Era o primeiro dia de dezembro. As ruas estavam cobertas de neve e fazia bastante frio, algo em torno de zero ou menos um grau Celsius. A proliferação de cachecóis, gorros, luvas e pessoas escorregando nas ruas deixava claro que o inverno batia à porta. Mais uma temporada de dias curtos, frios e melancólicos na Inglaterra. Ou seria em Recife? Foi num dia típico de inverno britânico que o diretor, produtor e roteirista Kleber Mendonça Filho visitou a Universidade de Leeds para discutir suas produções fílmicas, em especial Recife Frio, um curta-metragem de ficção científica que se passa numa Recife onde uma onda de frio estaciona e nunca mais vai embora, mudando hábitos e a forma de ver e viver a cidade. 

 

Kleber Mendonça Filho nasceu em Recife, Pernambuco, formou-se em Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco e atuou até 2010 como crítico de cinema. Como realizador de filmes, começou fazendo vídeos na década de 1990, mas seu trabalho só ganhou maior visibilidade nos anos 2000, com a produção de curtas. Os longas-metragens O Som ao Redor (2012) e Aquarius (2016) viriam para consolidar o nome de Kleber Mendonça Filho entre os grandes realizadores mundiais, premiado em festivais nacionais e internacionais. 

As produções do cineasta vão de lendas a ficção científica, passando por documentários, unindo realismo, ou perspectivas da vida real, com o mundo das ideias. Seu posicionamento crítico frente a temas relevantes no cenário brasileiro atual, como a especulação imobiliária, o tratamento dado a trabalhadores domésticos e, principalmente, o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, levou à associação de sua imagem ao PT e à militância política num momento em que o país vive uma das mais acirradas divisões políticas. Mas o cineasta garante: “Não sou um oráculo, não sou um líder político, sou só um cidadão”. 

 

Como surgiu a ideia de Recife Frio? 

Geralmente eu começo com o realismo ou penso em como mostrar as coisas de uma perspectiva da vida real e, lentamente, eu borro as linhas do real com a imaginação. Este filme, em particular, é um curta-metragem filmado de 2006 a 2009, em que a ideia veio da minha própria experiência, vivendo na Inglaterra, ainda adolescente, enquanto minha mãe fazia doutorado. O clima na Grã-Bretanha é completamente diferente do clima nos trópicos. Na minha região, muito particular geograficamente, não temos frio. O frio é um conceito alienígena naquela parte do mundo. E comecei a pensar sobre todas as coisas que fazemos porque somos treinados para reagir ao clima. Então é um filme de ficção científica, que se passa em Recife, onde imaginamos o que poderia acontecer se um frio completamente absurdo chegasse e nunca mais fosse embora. É um filme que se tornou bem-sucedido – porque os curtas não têm a mesma exposição dos longas – mas esse se tornou um blockbuster. Houve um caso interessante em que, após a exibição, alguém falou: “Eu não estava ciente desse incidente. Gostaria de discutir mais sobre esse problema que vocês estão tendo”. E eu fiquei em uma situação difícil, porque isso é ficção científica, não aconteceu, e as pessoas ficaram rindo e desconfortáveis! 

Quando você fez Recife Frio pensou nele como uma forma de encorajar as pessoas a discutirem a mudança climática? Há uma visão política nesse filme? 

Normalmente um filme começa a partir de uma cena. É importante identificar uma boa cena – boa o suficiente para fazer o filme inteiro rodar em torno dela. Nesse caso, a cena que eu realmente queria mostrar é a do quarto da empregada. Até hoje, mesmo com os novos edifícios, ainda projetam “o quarto da empregada”. E todos os quartos – o principal, o das crianças, talvez o do hóspede – estão juntos na parte sofisticada da casa, enquanto o quarto da empregada está atrás da cozinha. Não se importam nem em projetar uma janela, apenas paredes. Esse é realmente o tipo de coisa sobre a qual os comunistas falam – os comunistas como eu, que nunca fui comunista, nem mesmo na adolescência. Mas uma vez que você coloca isso em um filme, as pessoas começam a pensar: “Oh, nunca pensei nisso.” Talvez algo mude culturalmente. Eu não vejo nesse filme nenhuma crítica a nenhum governo em particular, exceto ao próprio Brasil, que tem um conjunto de problemas que vêm de centenas de anos. Hoje O Som ao Redor pode ser visto, no Brasil, como um filme da esquerda, mas ele não foi visto assim em 2012, ele nunca foi pensado em termos de discussão de direita e esquerda. Não faço filmes políticos que aconteçam em Brasília ou em algum edifício do governo. A política começa na cozinha. 

É importante identificar uma boa cena – boa o suficiente para fazer o filme inteiro rodar em torno dela. Nesse caso, a cena que eu realmente queria mostrar é a do quarto da empregada.

É uma preocupação sua discutir questões que toquem a realidade brasileira? 

Tem sido assim, mas não é uma coisa que eu penso. Na verdade, é fácil falar de várias coisas depois do filme feito. Por exemplo, agora eu vou fazer um filme novo e a imprensa diz: “eu queria que você falasse sobre seu filme novo”, e eu não tenho nada para falar, porque é um grande processo de descoberta que eu ainda vou viver. E às vezes não é fácil falar nem quando o filme já existe, mas ainda não foi lançado. Quando Aquarius foi pra Cannes a imprensa inteira me ligou querendo saber do filme. Eu ainda tinha dificuldade de falar. O que eu não gosto é de parecer um vendedor de mim mesmo, sabe? Até porque eu não sei como vai ser o próximo filme. Eu tenho uma ideia, mas não sei como ela vai se desenvolver. Eu não penso, quando parto para fazer um filme, “eu sou um cidadão brasileiro”. Isso é uma coisa que eu falo depois. É o ponto de vista de alguém que mora no Brasil e que usa o cinema para desenvolver ideias, aí, sim, do ponto de vista brasileiro. 

As produções comerciais são muito concentradas em Rio de Janeiro e São Paulo, mas Recife tem se fortalecido como polo de cultura e você está fazendo parte disso. Você não é o diretor nordestino, nem recifense, mas o diretor. Você se incomoda com a questão do estereótipo? 

Os jovens cinéfilos de Recife já nasceram num ambiente muito mudado para melhor, eu acho. Eu vivi uma fase onde não só a nossa produção era quase inexistente ou, quando começou a existir, nos anos 90, era pouca, mas já era boa. Quando comecei a viajar com os meus vídeos, tinha preconceito regional: “Ai, que legal, nordestino fazendo filme!”. Hoje Pernambuco conseguiu se firmar de uma maneira muito potente. A gente faz filmes, não se questiona mais isso. Mas eu vivi esse momento e não era agradável. 

Quando comecei a viajar com os meus vídeos, tinha preconceito regional: “Ai, que legal, nordestino fazendo filme!”.

O tratamento muda de acordo com o sotaque, com o modo de falar? 

Isso ainda é forte no Brasil. E, na verdade, eu diria que, hoje, a gente tá avançando em marcha a ré, eu ouço coisas que não ouvia desde os anos 90: piadas com nordestino, a coisa dos eleitores de Bolsonaro dizerem que o Nordeste deveria ser deixado de fora do Brasil, que o Nordeste é responsável pela eleição de Lula e Dilma – eu achei que a gente tinha passado desse estágio. Mas na área de cultura eu tive que enfrentar umas gracinhas e preconceitos. Uma vez eu cheguei, como jornalista, para fazer uma entrevista com o produtor e diretor de um filme americano no Copacabana Palace. Eu me apresentei: Kleber Mendonça, Jornal do Commercio, Recife. Aí a assessora de imprensa falou: “Ah, você vai precisar de tradutor, né?”. Eu disse, não, eu falo inglês. “Pô, legal, o pessoal de Recife falando inglês”. Então muita coisa mudou, eu me impus, mas a gente tem outros obstáculos a vencer: o machismo, a questão racial – são muitos desafios preocupantes. 

Com Aquarius você traz a questão imobiliária, que é um problema sério no Brasil. Depois desse filme você passou a ser chamado de comunista, petista… Como você se vê diante disso? 

Eu acho que há um fenômeno que não é brasileiro, é mundial. Tá também na Inglaterra, na França, mas o Brasil e Estados Unidos vivem um momento bem difícil, e muito disso passa por uma ignorância gigantesca. Como disse: nunca fui comunista, nunca fui petista. 

Na Wikipedia sua foto é com Dilma. 

Eu já tirei foto com Dilma, sim, inclusive quando estava apoiando a democracia no país e, desde aquela época até hoje, nada foi provado contra aquela mulher. Então essa foto, pra mim, tá tranquila. Eu não estou do lado de uma ladra ou de alguém que fez algo errado. Então, acho que a discussão, em cima de estereótipos, fica muito burra. 

É incômodo ser associado à política? Porque todo filme é um ato político. 

Essa questão gera uma confusão conceitual. Porque o ambiente político e cultural cidadão no Brasil está dopado de mídia – que molda a forma como a sociedade pensa – e quando você se expressa e tem um ponto de vista diferente, isso faz de você um estranho. Então, o simples fato de você se expressar e dizer “isso tá errado”, faz de você um ativista político, coisa que eu não sou. E não há nada de anormal em ser um ativista. Mas não tenho o menor talento para isso e, é incrível, com Aquarius me viram como se eu fosse um tipo de líder político, me chamaram para o Roda Viva, pra entrevista na Caros Amigos, qualquer coisa que acontecia queriam saber o que eu pensava, e eu fui cortando isso. Não sou um oráculo, não sou um líder político, sou só um cidadão que na fila da padaria diz “você está furando a fila”. 

Sua imagem hoje está muito relacionada ao protesto que você protagonizou junto com os atores de Aquarius em Cannes. Como você vê aquele momento hoje? 

Com um enorme orgulho! Tudo o que a gente estava tentando evitar, alertando para o golpe, aconteceu, e de maneira muito pior! A sociedade brasileira está andando pra trás, o governo foi tomado por ladrões, os direitos sociais estão sendo roubados, um bando de homem velho, branco, fodendo o país… A gente fez o certo: um ato cidadão, tranquilo, pacífico, elegante, e deu o recado.   

Tudo o que a gente estava tentando evitar, alertando para o golpe, aconteceu, e de maneira muito pior! A sociedade brasileira está andando pra trás.

O protesto foi planejado ou surgiu na hora? 

Foi planejado na noite anterior. “Vamos fazer um protesto amanhã… Como? Tira os papéis e mostra: tem um golpe acontecendo no país”. 

Você acha que esse ato repercutiu na audiência do filme?   

Numa sociedade dividida, quem tava do nosso lado apoiou o filme. A parte cômica é que quem não estava e nunca estaria do nosso lado não vai ao cinema, então, não fez muita diferença. Em termos de gerar energia em torno do filme, acho que terminou gerando, mas obviamente o objetivo não era esse. Era ser um cidadão e dizer “isso aqui está errado”. 

Como esse evento interferiu na não indicação do filme para o Oscar? 

Eu fiz um filme que é um sucesso internacional, está distribuído em mais de 100 países, traz e trouxe prestígio para o cinema brasileiro e para o país. E um governo ladrão e nojento preferiu sabotar um produto do próprio Brasil. A minha vida continuou normal, continuei viajando o mundo inteiro com o filme. Aquarius tá em DVD e Blue-Ray pelo mundo, tá na Netflix em mais de 150 países. Pra mim não mudou absolutamente nada, exceto a vergonha internacional que o país passou ao deixar de fora o filme que deveria representar o país naquele ano. Tanto é que o filme que foi escolhido afundou sem deixar nenhum vestígio. 

E qual a sua opinião sobre o cinema brasileiro hoje?  

O cinema brasileiro, depois de muito investimento humano e de política pública, tá mostrado frutos cada vez mais fortes. Esse ano (2017) a gente tem alguns filmes que são êxito: Gabriel e a Montanha, do Felipe Barbosa; As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra; Arábia, de João Dumas e Affonso Uchoa; As duas Irenes, de Fábio Meira. A gente teve antes O Boi Neon, de Gabriel Mascaro; Mãe só há uma e Que horas ela Volta?, de Anna Muylaert, o próprio Aquarius. São sucessos de prestígio para o cinema brasileiro e, dentro das condições atuais de mercado –que são muito difíceis – eles foram e estão sendo bem-sucedidos. E tem um outro lado do cinema brasileiro que eu sei que esse ano não foi tão bom, mas que tá vivo e funciona, que são os filmes comerciais, que têm a pretensão de fazer dinheiro e levar milhões de pessoas ao cinema. E, no meio, entre uma coisa e outra, têm filmes que não são vistos, que não dão certo comercialmente, que não são obras de prestígio junto à crítica. Mas eu acho que é assim mesmo. A gente está num momento difícil, de pulverização da atenção. Hoje você tem cinema, TV, TV a cabo, Netflix, pirataria, Amazon, DVD – ainda que morrend. O cinema nunca teve tão espalhado em tantas plataformas. E isso faz com que seja cada vez mais difícil ser visto, mas, ironicamente, também nunca foi tão… – a palavra não é fácil, porque eu não posso usar essa palavra – mas nunca um filme foi tão “realizável”, né? Se você comparar com 20, 30 anos atrás … Hoje, com um celular, em tese, é possível fazer um filme e editar em casa. Então, nunca foi tão realizável e, ao mesmo tempo, tão difícil. Parece que é um sistema de segurança que instalam, né? Ah é, vai ser fácil fazer, mas tem isso aqui… 

Você tem um espectador imaginário? 

Eu. 

Mas esse não é imaginário. 

É, porque tem o eu realizador e o eu espectador. E eu tenho que estar muito feliz, tem que ser algo que eu gostaria de ver. Em Aquarius eu queria ver uma mulher massa, que não se submetesse a homem. Queria que ela fosse ótima, tranquila, forte. E eu acho que está meio em falta esse tipo de mulher no cinema. 

Em Aquarius eu queria ver uma mulher massa. Queria que ela fosse ótima, tranquila, forte. E eu acho que está meio em falta esse tipo de mulher no cinema. 

Como você vê a comparação da Clara com Daniel Blake? 

A realidade social não importa tanto, o que importa é o espírito de cada pessoa. Eu gosto do Daniel Blake, eu só acho que o Daniel, o personagem, é um anjo, é tudo de bom. E Clara é massa, mas é um pouco complicada e eu gosto disso. Feito o personagem de Maeve, em O Som ao Redor, ela é massa e tal, mas a maneira como ela fala com a empregada… 

Os personagens não são pretos nem brancos, mas cinzas. 

Eu espero que eles sejam 3Ds. Então Clara é ótima, mas é burguesa, é orgulhosa, é riquinha. Porque isso é um problema também. No cinema engajado, se você bota um personagem que é proletário de uma maneira bem clichê, você já tem a simpatia de pessoas ativistas. E o personagem proletário complexo é muito mais difícil de se ver que um personagem proletário como Daniel Blake, paz e amor completo, um homem todo bom… aí fica muito pregando para convertidos. Acho melhor quando você faz uma careta vendo um personagem. “Ela disse isso? Uau!”. Aquarius tem muitos segredos e buracos e depois, pensando, é que você lembra. 

“Bacurau”, dos pernambucanos Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, vencedor do prêmio do júri no Festival de Cannes 2019.

É legal um cinema que faz pensar? 

É, mas isso também não é planejado. O filme sai da maneira como ele sai. Eu nunca fiz um filme para pensar. Eles saem de maneira orgânica, tranquila.  

 (Entrevista publicada na Revestrés#34 – janeiro -fevereiro de 2018).