As repressões atuais podem parecer difusas, mas não menos reais e covardes do que as realizadas por ditaduras e fascismos clássicos. Se as formas de perseguição são outras, a natureza da perseguição é a mesma. E, se as formas de perseguição são múltiplas, as formas de combate hão de ser. 

Comecemos pelas semelhanças na natureza do regime. 50 anos atrás, Caetano e Gil foram presos sem nenhuma acusação formal, no quartel da polícia do exército, na Tijuca, mesmo local em que o atual presidente votou antes de ser declarado vitorioso nessas eleições.(1) 

O militar que interrogou os tropicalistas justificou suas prisões pelo fato de o “pop e o rock desagregarem valores tradicionais da cultura brasileira”. Um insulto, portanto, à identidade nacional. Em 67 realizou-se, em São Paulo, uma marcha da família com Deus e contra a guitarra elétrica. Era o ano do 3º Festival da Música Popular Brasileira da Record.(2) Um insulto à ordem moral, social e familiar. 

Como combater o mesmo imperativo de identidade nacional e a cruzada pela moral de 50 ou 500 anos atrás? Trata-se de uma pergunta-utopia? 

Utopia, é um termo criado por Thomas More por volta de 1516. A principal obra desse filósofo, diplomata e escritor inglês carrega esse nome, Utopia. O livro apoiado no novo saber humanista, sustenta-se ainda na descoberta da América. More se fascina pelas narrações sobre as navegações de Américo Vespúcio que o ajudaram a compreender que a América não era um lugar perdido na Ásia, mas um novo mundo e cria uma justaposição de termos significando o “não lugar” ou “o lugar que não existe”. 

Retenho disso o período 1500, a América e o “não lugar” para ligá-los à aula pública ministrada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, durante o ato Abril Indígena, nas escadarias da Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 20 de abril de 2016. 

Em 17 de abril, três dias antes da aula pública, fora instaurado pelos deputados federais o processo de impeachment de Dilma Rousseff. A insanidade e violência das falas dos parlamentares prefiguravam o que viveríamos e escancaravam o golpe. 

O texto de Viveiros de Castro me fez lembrar que o golpe de 2016 começou em 1500 e, ao mesmo tempo provocou em mim o desejo de resistência. Intitulado Os involuntários da Pátria(3), o discurso acusa aqueles que se acham os donos do Brasil, a saber, a burguesia do agronegócio, o grande capital internacional e a otária fração fascista das classes médias e altas urbanas de prepararem uma ofensiva final contra os índios sob a forma, entre outras, da PEC 215(4), apoiados desavergonhadamente por um Estado que tem por obrigação constitucional proteger os índios. 

De forma clara e contundente o texto em questão mostra a diferença entre índio, indígena e brasileiro. E a forma como os índios – os primeiros involuntários da pátria – foram transformados em pobres, assim como os negros, para servirem ao sistema capitalista. Caiu-lhes sobre a cabeça uma pátria que não pediram e que só lhes trouxe humilhação, escravidão e despossessão. E finalmente seriam involuntários da pátria todos que desejam uma outra pátria. 

Não podemos ser indiferentes, nem mesmo neutros. Temos condições e devemos mobilizar o desejo de acolher novas personagens, incorporando suas pautas, marcas e alegrias. Muitos fizeram e fazem isso há muito tempo, mas a urgência atual nos convoca a fazer muito mais, pois estamos em guerra. 

Esse texto continuaria reverberando em mim quando passei o mês de junho no Campo Arte Contemporânea, espaço de residências artísticas criado pelo coreógrafo Marcelo Evelin e a produtora Regina Veloso, em Teresina. Lá conheci Fernanda Silva, artista de Parnaíba, litoral piauiense. Reconheci imediatamente nela a força que vem da terra quente em que vive e no seu corpo todos os povos involuntários: o povo negro, o povo indígena, o povo pobre, o povo LGBTQ. Transexual, Fernanda luta diariamente contra a ignorância conservadora de sua cidade, estado, país. 

Quando a vi imaginei-a lendo a aula de Viveiros num púlpito como fez o líder indígena Ailton Krenak diante da Assembleia Nacional Constituinte, há 30 anos. Minha intenção foi citar momentos históricos na construção e demolição desse país, reverberar e debater as acusações e reflexões apontadas na aula pública. 

Fernanda engoliu o texto feito uma canibal. O púlpito foi a margem do rio Parnaíba onde gritou cada palavra com a urgência de uma vida cuja expectativa é de 33 anos no país líder no ranking de assassinatos de transexuais. 

Fernanda subverte a soberania hegemônica. Afirma sua existência apesar de todas as coerções. Inteligente, forte, não se omite. A única da família com ensino superior, foi um professor respeitado antes da transição de Fernando para Fernanda. No dia que decidiu comprar o vestido amarelo que desejava minuto a minuto e que a vestiria como mulher que é, virou piada e alvo de agressões. 

Nas nossas muitas conversas ouço seus sentimentos sem saber o que significa ser uma existência que é vista como uma deformação e uma afronta. 

Em meio a tanta agressão sente-se feliz por não precisar mais mentir. “Eu sou um corpo aberto e quanto mais aberta mais feliz”, ela diz. 

Entre o eu e o outro, entre o artista e o fenômeno, entre o lugar que existe e o lugar que não existe, entre Fernando e Fernanda, há o espaço aberto, a possibilidade de compor uma nova via, o reconhecimento de uma realidade ignorada. 

“Eu ainda não acessei tudo do meu corpo, é uma estrangeiridade de mim mesma. É como pensar por outro caminho, pensar pela sola do pé.” 

Fernanda não traduz e não reproduz a convenção, produz diferença assim como toda arte que mereça esse nome. Corpo-fetiche para alguns, corpo-sem-sentido para outros. 

Me faz pensar na moral sem sentido, proposta por Nietzsche, que diz respeito a uma posição pessoal. É a invenção do sentido de cada um e a responsabilidade de cada um sobre isso. 

Diante da imposição de uma identidade nacional, a singularidade é um modo de enfrentá-la. Diante da falta de essência, a arte é uma forma de preenchê-la. Diante da produção da indiferença, produzamos diferenças. Diante da falta de liberdade de expressão, libertemos nossos pensamentos de estruturas hegemônicas. 

O que tem de liberdade no texto Involuntários da Pátria? É um chamamento e um protesto feito na escadaria da Cinelândia que não poderia acontecer entre muros de uma instituição ou não o teríamos ouvido. 

Que liberdade há no Campo Arte Contemporânea? Um lugar de criação e de insurgência. Foi lá onde criamos a performance Involuntários da Pátria com um corpo real e de viés. 

O que há de liberdade na Fernanda? A afirmação de uma forma de vida, de uma libido, de uma estética corporal, de uma posição pessoal. 

Quanto a mim, nos termos de Etienne Souriau, a liberdade de testemunhar existências mínimas. 

Todos nós, brancos, que estamos aqui, estamos no poder, e não somente os políticos, a polícia, o exército, a elite econômica, etc. Estamos no poder porque somos curadores, diretores, educadores, gestores, jornalistas, etc e escolhemos quem entra e quem não entra nos projetos sob nossas responsabilidades, escolhemos a quem e ao que damos visibilidade. Estamos no poder porque nossos corpos são poupáveis e não matáveis ou simplesmente porque podemos ir e vir, comer e tomar banho quente todos os dias. 

Há uma demanda do mundo hoje que recoloca várias questões e conceitos, inclusive o de liberdade. 

Se, de um lado, a liberdade nos é tolhida pelo governo atual e a onda conversadora que ele carrega (ou pela onda conservadora que carrega o governo atual), de outro há um caminho que o próprio limite aponta. 

Os que estavam ocultos por uma hegemonia crônica nos convocam a fazer uma aliança com a liberdade deles e isso nos liberta também. Nos liberta da ordem unicista, da estrutura de pensamento imperial, da cegueira de não enxergar outras vidas. Não podemos ser indiferentes, nem mesmo neutros. Temos condições e devemos mobilizar o desejo de acolher novas personagens, incorporando suas pautas, marcas e alegrias. Muitos fizeram e fazem isso há muito tempo, mas a urgência atual nos convoca a fazer muito mais, pois estamos em guerra. 

O Rio de Janeiro com Witzel, tem recorde de mortes em confrontos com a polícia: cinco por dia – mortes que fazem parte de um programa maior de genocídio do povo negro; em julho desse ano o desmatamento na Amazônia sobe 278% em relação a julho de 2018; indígenas e líderes rurais são brutalmente assassinados como no conflito Wajãpi; desempregados e refugiados são entregues ao abandono; uma mulher é morta a cada duas horas vítima de violência e a cada quatro horas uma menina com menos de 13 anos é estuprada no Brasil enquanto uma Portaria publicada em 19/8 no Diário Oficial da União extingue seis órgãos de combate à violência contra a mulher e minorias; após uma década de queda na desigualdade, nos últimos dois anos quase 2 milhões de indivíduos rumaram para a pobreza extrema. O Estado destrói, mesmo que seja preciso matar, todo projeto de luta pelo bem comum, como é o caso do MST. 

O cerco e a censura à arte e a educação são partes da estratégia de inibir a compreensão e o debate sobre o que está acontecendo e sobre o que somos. Tudo o que está acontecendo nesse país e no mundo, somos nós. 

Há vitórias também. Uma chama-se Erica Malunguinho. Negra, nordestina, primeira deputada estadual trans na história legislativa de São Paulo. Essa mestra em estética e história da arte entende sua eleição como um “processo de reintegração de posse para negras, negros e indígenas”. 

E o carnaval, essa arrebentação popular, essa vitória do povo. Lembremos da vital apresentação da Mangueira este ano mostrando com arte tudo aquilo que esse Estado quer que esqueçamos 

A produção intelectual, cultural e artística do povo negro está muito mais tangível para os que estão do outro lado do muro. Nos cabe reconhecer e nutrir movimentos de mudança, reconhecer e afirmar tudo que pode gerar uma nova forma de pensar, sentir e fazer. 

O outro não está mais invisível, isso não tem volta e talvez essa seja a única força com a qual podemos contar e a única vitória a comemorar. Mas eles-nós ainda correm-corremos muito perigo. 

O filósofo David Lapoujade, em aula recente ministrada em São Paulo, postula que artistas são advogados de realidades que até então não tínhamos percebido. O artista-criador conduz às formas que estão em nós e, nesse sentido, a forma que a arte atinge nos justifica. 

Quanto a nós, nos vemos justificados como testemunhas. E a obra de arte, em qualquer forma que assuma, se torna um ato de justiça(5) – e de liberdade, proponho acrescentar. 

É essa liberdade e justiça o que se quer reprimir e essas “reintegrações de posse” o que se quer evitar, a todo custo, em tempos conservadores. 

A arte que nos justifica não é o entretenimento escapista, mas a que nos ajuda a ver e viver esse desconforto, a senti-lo, movê-lo e pensar-inventar coletivamente a partir dele. Uma arte contra a fuga individual e a favor do comum. 

Onde está Amarildo? 

Quem mandou matar Marielle? 

Lula Livre. 

Fora Bolsonaro.  

  

*Texto apresentado no Simpósio Cuidado, Arte! Mesa: Liberdade da arte em tempos de conservadorismo. Goethe-Institut de Porto Alegre, em julho de 2019. Atualizado e complementado para essa publicação. O título é uma frase da música Quereres de Caetano Veloso. 

Notas 

(1) e (2) Fatos citados em Antifascismo Tropical. Eduardo Passos e Danichi Hause Mizoguch. Série Pandemia. N-1 edições. 

(3) Os Involuntários da Pátria. Eduardo Viveiros de Castro. Série Pandemia. N-1 edições. 

(4) A emenda muda a constituição transferindo a competência da demarcação das terras indígenas para o Congresso Nacional e possibilita a revisão das terras já demarcadas. Esse é um feito do governo Temer. Quero lembrar que em 2018, durante o governo interino golpista, 16 lideranças indígenas da região do Mato Grosso, foram presas e mantidas imobilizadas durante o período em que diversas propostas no Congresso ameaçavam direitos indígenas. Já o governo de Jair Bolsonaro tem a força de destruição semelhante aos 46.825 pontos de queimadas na Amazônia, segundo a medição do Programa Queimadas do INPE. Esse valor representa um aumento de 64% em relação à média dos últimos dez anos para o mesmo período. 

(5) citação da aula de David Lapoujade, O que pode a arte, Instituto Tomie Otake, São Paulo, maio 2019. 

Sônia Sobral é gestora cultural e Curadora de Dança do CCSP – Centro Cultural São Paulo, da Secretaria Municipal de Cultura.

Publicado na Revestrés#43 – setembro-outubro de 2019.

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