(…)  

Como o rumor do mar dentro de um búzio  

O divino sussurra no universo  

Algo emerge: primordial projecto  

(Sophia de Mello Breyner Andresen) 

 

Ninguém poderia me salvar senão você. Ouve. O vento já sopra há tanto tempo que meus pertences inúteis e esquecidos estão encobertos pela areia fina desta praia vazia. Repara, só a concha se revelava naquele dia; só a concha se revela hoje. Nervoso fui me despindo de mim, irônico tormento ancorado no absurdo, nu do desejo ínfimo de viver. Estava miserável. Quando levei a concha ao ouvido, esperava os segredos marinhos, as profundezas obscurecidas pela civilização estrondosa da qual insistimos em nos orgulhar. Eu era uma farsa: sempre uma ausência em corpo pulsante, uma sombra entre sombras transitando nas vias da realidade. Segurando a concha em meu ouvido esquerdo chorei. Não que me fosse um hábito chorar. Ainda mais nu, numa praia esquecida e nublada do sol que se costuma imaginar junto à paisagem marítima. A voz sibilava na concha, aquela voz de mulher, aquela voz aquecia e tonteava. Aquela voz. Erva venenosa de flores arroxeadas, manto que tudo toma. Permaneço errante, levado pelo vento, meu algoz pela eternidade, a mesma ideia de eternidade que ignorei uma vida inteira. De fato me perguntei a respeito da vida tantas vezes enquanto ouvia aquela voz que, de súbito… de súbito me senti descoberto em meio ao nada violento que me afrontava: o mar. Definitivo e absoluto me encarava, um eu nu, inerme, um mísero e relativo grão. Pés fincados na areia empapada de água e sal.  

 

A voz da mulher me contou seus passos até ali, me revelava uma existência medonha e invisível. Aquela voz me prometia um segredo no final, toda uma narrativa quebrada, hesitantes parágrafos, frases pausadas. O segredo era o que eu esperava ao encostar o ouvido na concha. Um segredo abissal, o nada possível, alguma chave para destravar as demandas humanas que me torturavam. Era tão somente uma mulher, timbre e fio tecido em lamurio tortuoso. Aos poucos fui enleado, atravessado e agredido pelas palavras daquela voz. Contava ela que chegava cedo diante do mar, fazia esta rotina de molhar o corpo e sorver goles generosos da água fria e salgada. Não vinha ao mar se perder, mas se purificar, sem batismos ou ritos. Ela apenas vinha, mergulhava e ia embora. Com seu vestido de algodão ela adentrava ao mar, não temia se molhar, não parava em face do frio, apenas entrava na água: passo resoluto e macio na areia clara. E então, um dia, aconteceu a concha. O pé em sangue vermelho irrequieto, o corte ardendo da água que lavava e retornava ao tecido marítimo. Pisara na bela forma que um dia fora casa d’algum animal pré-histórico. Não sei se do sangue vieram as palavras; se da voz vieram os impulsos. Não exijo tampouco o seu existir me ouvindo aqui, na solidão deste dia. Eu já estava nu e vazio, pronto ao mar, concha ao ouvido, mão direita no peito num gesto espontâneo de quem segura a alma que está prestes a abandonar o corpo tal qual pássaro pequeno, delicado e pulsante dentro das mãos, vida que se projeta indivíduo afora ansiando liberdade. Você deve desconfiar a respeito do meu destino, de como será meu final nesta história, mas ainda tenho a lhe dizer, não desista, me escute!  

A voz, em determinado momento, me pedia conforto, me pedia paciência, me pedia sem saber que me exigia mortalmente. Ela me chamava, pelos poros todos eu respondia, com os olhos fechados eu chorava e em direção ao mar reverberei grito. Pé ante pé entrei na água. O arrepio, ato reflexo ao tocar a pele no mar congelante, encerrava em mim mil demônios que lutavam contra aquela voz que invadia lentamente meu cerne. Não pude desconfiar minimamente o porvir. Não recuei. Não tomei fôlego. As ondas me lançavam como desejavam e senti, ali, que elas desejavam que eu ficasse. Participei com calma dos movimentos: primeiro foram fluidos, respirei o ar, então a água. Depois ficaram violentos como o desespero, meu peito lutava, desenhei espasmos na atmosfera nebulosa. Abatido, fui perdendo o viço, antes tão comum aos meus movimentos diários; estava completamente sem forças para sustentar a cabeça fora da água, sem energias para exigir que minhas extremidades suportassem o declínio das partes vitais. Cada fibra das minhas carnes estava ardendo em brasas, o fôlego de antes era a agonia do agora, o ar ardia as fossas e o pulmão como se resfolegasse labaredas em sal. Minhas pernas não mais respondiam e meus braços se deitavam lentamente dentro do mar. A única palavra que me passava à mente era sobreviver: resistir à consequência que era ficar ali. Não me passou pela cabeça memória duma vida, apenas medo. Medo exordial e derradeiro que escondemos sob cacos de certeza e confiança: a morte. Minha alma estava entregue, mas meu corpo reclamava em resposta aos primais desejos humanos pela continuidade. Toda uma cultura de preservar, suportar e resistir sendo puxada lentamente para o fundo silencioso do oceano. A luta representava uma permissão, eu precisava vencer os meus impulsos de perdurar, precisava me deitar para receber a dádiva imensa que estava adiante.  

No fim, com os olhos abertos, encontrei-a diante de mim. Aquela presença evidenciava meu desejo de ficar, era como uma recepção, um delírio que me abarcava afável. Participávamos da imensidão marinha: tocávamos todos os continentes, semelhantes a deuses em sua onipresença, criaturas ubíquas que já não estavam mais sozinhas. Corais me intrincavam a pele e os ossos, ao mesmo tempo ela estava em mim, e eu era a voz dela. Aquela voz. Os mapas desenhados pelos crustáceos em suas pacientes e tortuosas geografias, encobriam as pegadas que haviam ficado na beira d’água. O cheiro oceânico me pertencia, enchia meu peito agora aquoso; meus cabelos desprendiam de minha cabeça junto aos meus pensamentos de homem errante. Havia vida, como há vida. Olhos gelatinosos, pele que refletia a beleza das multicoloridas vidas habitantes do gigantesco reino de vidro agora minha morada. Dos dedos membranosos, criaturas minúsculas saíam em busca de liberdade. Enviei mensagens indecifráveis para que viajassem em caravelas e águas-vivas. Nosso baile era lento, sem muitas pompas deslizávamos nos naufrágios que desenharam há muito a enferrujada arquitetura humana nas profundezas azuis. Eu fiquei.  

Saiba então da concha que você tem ao ouvido agora, ela é tão somente o que restou desta passagem: ouça a minha voz, sinta enfim o que tenho a lhe dizer…  

Publicado na Revestrés#36- maio-junho de 2018