A vida é para quem gosta de mudanças – ou, pelo menos, as encara com maestria. É, pelo menos, o que diz com os olhos seu João Batista da Silva, 84 anos. Ele para observando o próprio retrato pendurado na parede. Pintados à mão estão ele e a esposa, Maria de Lourdes. “Veja como mudei, eu era tão novo aí”.

A primeira mudança foi aos 17 anos: foi com a família de São Bernardo, Maranhão, a Parnaíba, no Piauí. O trajeto foi feito a pé. Viviam da roça, mas a chuva acabou e partiram rumo ao litoral. Lá, casou-se aos 18 anos. “Eu não tinha emprego. Cheguei a trabalhar com sal em Luís Correia, até um vizinho me falar dessa vaga na padaria do português”.

Era início dos anos 50 quando João passa a ver o mundo por trás do balcão da padaria. Nunca tinha feito um só pão – mudou de novo, do salão para a cozinha. “Aprendi ali a fazer a massa”, relembra. Trabalhou por 25 anos como mestre de padaria para o tal português. “Quando o dono morreu, fomos indenizados e foi o maior dinheiro que já ganhei na vida”, diz, sorrindo. “Corri para casa e enterrei tudo no chão”.

Dali, veio de trem com a mulher e os 14 filhos para Teresina – um amigo confeiteiro trabalhava em uma padaria e podia ser a ponte para um novo emprego. Conseguiu: foi parar na panificadora Cristal, onde virou o Mestre Batista. “Ali ainda cheguei a empregar cinco filhos. Diferente de mim, eles já estudaram e puderam trabalhar além do balcão, na administração”, orgulha-se. Foram seis anos de Cristal, até um derrame lhe tirar, de novo, da saga de padeiro. “Aí eu me aposentei, já tinha mais de 30 anos de padaria”.

Aposentar nunca foi exatamente parar. Não no vocabulário de João Batista. Com fabricação caseira, passou a produzir pães, petas, bolos e a vender por toda a cidade, onde circulava de bicicleta. “Sempre foi o meu transporte, rodei essa Teresina toda assim”, explica. Tomou gosto pelo milho verde: passou a comprar e vendê-lo assado, cozido e depois veio a produção de pamonhas – aquelas enroladas na própria casca do milho, como um bombom gigante, e das quais João se orgulha: “A minha pamonha parece uma banana, prática, você descasca e come ali na hora”, ri.

João Batista - Foto: Maurício Pokemon

João Batista – Foto: Maurício Pokemon

Hoje, somando mais de oito décadas e depois de dez cirurgias, o ofício é brando mas permanece: antes das dez da manhã seu João já está ralando o milho que, depois, liquidificado com leite e açúcar, vira a pamonha fornecida ao Mercado do Pão. A filha Cláudia Maria e um dos netos – aliás, são mais de 30 e outros tantos bisnetos e também tataranetos – lhe ajudam na produção.

Mestre Batista virou personagem dessa história por um fato curioso: há mais de 20 anos ele proporciona um lanche coletivo para a turma da limpeza que passa nos dias ímpares à sua porta, no bairro Ininga, zona Leste de Teresina. A gigantesca casa em que mora foi construída nos anos 70, quando chegou a Teresina – para abrigar todos os filhos, são seis quartos, salas amplas e nada menos que 100m de fundo.

Mas é no terraço da frente que os garis fazem a festa. “Começou com eles passando na porta e me chamando de tio. ‘Tio, me dê uma água’, aí eu fui criando amizade”, diz, simpático. De um copo d’água a gentileza se estendeu a um cafezinho, um bolinho, pães, biscoitos e, é claro, às famosas pamonhas. “Eu trazia coisas que sobravam na padaria, e também do que eu fabricava aqui em casa”, comenta mestre Batista.

“Meu pai sempre foi muito generoso”, diz Cláudia, a 15ª filha. “O lanche dos lixeiros era o maior prazer que ele tinha, era um grupo de amigos”, lamenta. É que duas décadas após servir fielmente o pit-stop do café, seu Batista se viu impedido de continuar o feito. “Os meninos começaram a ser suspensos no trabalho, então eles foram pressionados a não fazerem mais essa parada”, explica a dona de casa. “Meu pai lamentou muito”.

Uma mesa grande era posta embaixo da amendoeira, e ali eram servidos o café, o lanche, a prosa. “Até o motorista descia”, relembra João. A coleta era noturna, e seu João recusava-se a ir dormir enquanto o grupo não passava. “Às vezes ele ia deitar porque eu insistia muito, mas ficava aberto aqui pra eles entrarem e se servirem”, conta a filha. O caminhão da coleta de lixo passa na rua Jaime da Botica às segundas, quartas e sextas – mas hoje a pausa é só para um “olá” e “até logo, tio”.

Não foi a primeira vez que a boa ação do mestre João foi polida. Como balconista em uma das padarias nas quais trabalhou, certa vez a patroa o repreendeu porque estava dando a um pedinte os biscoitos que sobraram de uma fornada. “Se eu dou, é porque tá sobrando”, defende-se.

Guardou, da encomenda que fornece todos os dias, três pamonhas para nossa equipe. Sorrindo com os olhos, nos oferece. Mestre Batista não pode nem quer parar com os quitutes. “Eu só vou parar de fazer no dia que me disserem que ninguém quer mais”. Provamos, e é deliciosa. “E sabe com o que fica melhor?”, diz prestes a revelar a dica de ouro. “Com coca-cola!”.

(Publicada na edição #23, dezembro de 2015/ janeiro de 2016)