Torquato Neto era um pronome pessoal intransferível, como fez questão de escrever. O piauiense, que nasceu em um dia (9 de novembro de 1944) e morreu no seguinte (10 de novembro), apenas 28 anos depois, desfolhou a bandeira do Brasil. Foi um pouco baiano. E muito carioca. No mapa do poeta, cabia tanto Pacatuba, a rua São João no Barrocão e o Parnaíba passando, quanto Tijuca, a Cinelândia, Copacabana e suas curvas.

 

Quarenta anos depois daquela noite no Bar das Pombas, na Usina, quando Torquato voltou para o apartamento, trancou-se no banheiro, escreveu um enigmático bilhete, abriu o gás e foi pra não voltar, Revestrés revisita alguns de seus lugares favoritos no Rio de Janeiro. Traça uma espécie de roteiro afetivo do “anjo torto”, poeta, louco, gênio, ícone da contracultura, eminência parda da Tropicália e outros tantos epítetos que não cabem na figura. Por ora, basta que se percorra esse texto como numa caminhada pelas ruas do Rio, de preferência ouvindo uma das letras de Torquato Neto musicadas por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé, Edu Lobo, Luís Melodia.

Primeira parada – Cervantes. Ou “Três da Madrugada” 

A entrevista com Toninho Vaz, autor de Pra mim chega, a biografia de Torquato Neto, estava marcada para o Cervantes, típico bar e restaurante carioca, no comecinho de Copacabana, quase Leme. Toninho e seu livro seriam os guias deste roteiro. A sugestão do Cervantes não foi por acaso. Era lá que Torquato costumava se reunir com Gil e Caetano, pedir um sanduíche de pernil com abacaxi, se alimentar de cultura e política, discutir versos e fazer rimas.

Naquela segunda-feira de outubro, era feriado e o bar não abriu. Mas isso não impediu que Toninho Vaz contasse sobre a costumeira travessia de Torquato ao lado dos baianos. “Caetano morava no Solar da Fossa, onde também viviam os irmãos Duarte, Rogério e Ronaldo. Eles caminhavam pelo Túnel da Princesa Isabel, saídos do Solar em direção a Copacabana. Vinham todos para continuar o papo aqui no Cervantes”, lembrou Toninho.

O Solar da Fossa foi um casarão que abrigou, em épocas distintas, inúmeros artistas vindos de diversos cantos do Brasil para o Rio de Janeiro. Aquela era a década de 60. “Torquato não chegou a morar ali mas praticamente passava os dias. Era visto pelos corredores, circulando, no apartamento de Caetano”, continua Toninho. “Foi lá, inclusive, que Torquato Neto e Tom Zé se conheceram”. Difícil imaginar que, hoje, o poeta sequer pusesse os pés. Explica-se: outrora babel das artes, o local se transformou no estacionamento do Rio Sul, um shopping encravado na paisagem de Botafogo.

Já no Cervantes, é impossível entrar e não pensar no franzino garoto de Teresina sentado em uma das mesas, rabiscando palavras em guardanapos. O bar é todo decorado com quadros e outras referências a Dom Quixote de La Mancha, o ilustre personagem do escritor espanhol Miguel de Cervantes. A propósito, mais tarde, lendo o livro de Toninho Vaz, descobre-se um oportuno depoimento de Rogério Duarte sobre Torquato: “Ele era um Dom Quixote, um magrelinho que se lançava contra os moinhos de vento com uma coragem total”

Segunda parada – Apartamento em Botafogo; cinema no Flamengo. Ou “Mamãe Coragem” 

Quando veio morar no Rio, aos 17 anos, Torquato se instalou no apartamento de um tio, Jonathan, em plena Praia de Botafogo, nº 356. O edifício era mais conhecido por sua má fama no bairro. Hoje, o prédio resiste sob o nome de Solymar. Mas é provável que Torquato aprovasse a vizinhança – a daquela época e a de agora. Além da vista para a Baía de Guanabara, o prédio hoje fica a alguns poucos passos do Unibanco Arteplex – Espaço Itáu de Cinemas, um complexo com seis salas e uma variada programação de filmes que se pretendem – em certa medida – alternativos.

Diga-se que cinema era um dos programas favoritos de Torquato Neto, que dava preferência às novidades da produção europeia exibidas no lendário Cine Paissandu, no Flamengo. Fechado há quatro anos, o espaço foi declarado patrimônio cultural carioca e há uma promessa de que seja revitalizado em breve como Cine Teatro Paissandu.

 

O biógrafo de Torquato conta que viver no Rio e poder caminhar todos os dias pelas ruas e avenidas da cidade era a realização de um sonho e que Torquato Neto saboreava todos os detalhes do folclore cultural da capital fluminense. “O edifício onde morava Drummond, o botequim que o Vinícius frequentava, as caminhadas de Rubem Braga por Ipanema, as histórias fantásticas sobre Nelson Rodrigues…”, diz Toninho, no livro. “Ele costumava segui-los pelas ruas”.

Guardadas as devidas proporções, é um pouco isso o que esta matéria faz com Torquato Neto agora.

Terceira parada – Adega Pérola e a Ladeira dos Tabajaras, 52. Ou “Geleia Geral”

Rua Siqueira Campos, número 138. Esse é o endereço do botequim preferido de Torquato Neto no Rio de Janeiro: Adega Pérola. O bar existe desde a segunda metade dos anos 50 e ficava situado estrategicamente entre a pequena casa que Torquato e sua mulher, Ana Maria Duarte, alugaram na Ladeira dos Tabajaras, e o Tereza Rachel, teatro carinhosamente chamado de ‘Terezão’ pela classe artística e a segunda casa de Torquato na década de 60.

Anos depois, com Torquato já morando no apartamento da Tijuca com Ana, o botequim continuava sendo frequentado por ele. Conta a lenda que foi no Adega Pérola que Luis Melodia, acompanhado de Renato Piau, guitarrista também piauiense, e do restante de

sua banda, encheu a cara com vinho e cerveja pouco antes da estreia de um show dirigido por Torquato e Luis Otávio Pimentel, no Teatro Opinião, que também ficava nas redondezas. O episódio acabou provocando um desentendimento entre eles. Torquato Neto até era dado a excessos mas não admitia a falta de compromissos.

Hoje, a pequena casa de vila de número 52 na Ladeira dos Tabajaras – que virou ponto de encontro de gente como Maria Bethânia, Macalé, Caetano e Nana Caymmi, Chico Buarque e Norma Bengell – nem existe mais. A rua abriga oficinas, umas poucas casas, muitos prédios e outros tantos botecos, e é agradável a sensação de transitar por ela imaginando que em um desses imóveis já fervilhou a contracultura nacional.

Quanto ao Adega Pérola, ele continua lá, de pé, e, dizem as boas línguas, nem mudou tanto nesses anos todos. Numa tarde de sábado chuvosa, bem ao gosto de Torquato (ele não era muito chegado ao Sol), entrar no Adega, pedir um chopp no balcão, saborear uma porção de bolinho de bacalhau ou sardinha, e apreciar o movimento, o entra-e-sai de frequentadores, ainda é programa dos melhores no Rio de Janeiro.

Quarta parada – Teatro Tereza Rachel. Ou “Let´s Play That” 

Foi no Terezão – histórico teatro que abrigou nove entre 10 espetáculos famosos daquele período no Rio, a exemplo do sublime Gal Fatal – que Toninho Vaz encontrou Torquato Neto pela primeira e única vez, ainda bem antes de sequer imaginar que seria seu biógrafo. “Alguém disse: ‘Aquele é Torquato Neto’”, conta Toninho. “Ele estava na segunda fila da plateia, cercado de amigos, vestindo uma camisa de mangas compridas justa que lhe acentuava o aspecto raquítico do tórax. Não me restam outras lembranças dessa noite além das figuras exacerbadas de Waly salomão e do fiel escudeiro Luiz Otávio Pimentel, poeta e cineasta underground, devorando um sanduíche”.

Recentemente, a empresa NET recuperou o espaço, que agora se chama Theatro NET Rio. Perdido no meio de uma galeria típica de Copacabana, o pequeno e aconchegante teatro se exibe novamente com seus tapetes vermelhos e tijolos aparentes, o dourado nas portas e poltronas. Desde março, tem recebido shows que vão de Paulinho Moska a Angela Roro, Elza Soares a Maria Bethânia. Em outubro, a própria Gal Costa voltou a subir no palco do ‘Terezão’ com o seu novíssimo “Recanto”.

Quinta parada – Peixoto. Ou “Pra dizer Adeus” 

A poucos quarteirões da Adega Pérola, também pertinho do Terezão, na direção da rua Figueiredo Magalhães, está o bairro Peixoto, um lugar bucólico encravado bem no meio do ruge-ruge de Copacabana. Ponha no ouvido “Pra dizer Adeus”, composição de Torquato com Edu Lobo, e embarque numa viagem pelo túnel do tempo. Vale o passeio pelas ruazinhas estreitas do bairro.

Mas foi ali, naquele ambiente nostálgico que Toquarto Neto, como narra Toninho Vaz na biografia, entre goles de cachaça e cinzano, teve uma conversa premonitória com Nacif Elias, um colega piauiense. Muito antes de sua morte, em um daqueles bancos da pracinha do Peixoto, eles discutiram sobre qual seria “a melhor forma de suicídio”.

Sexta parada – Café Lamas. Ou “Louvação” 

Pergunte aos cariocas sobre um reduto boêmio e intelectual e ele vai lhe sugerir de pronto o Café Lamas. Na época de Torquato, o Lamas original com seis mesas de sinuca profissional de pano verde ficava no Largo do Machado. Por conta das obras do metrô, o bar foi transferido em 1976 para alguns quarteirões adiante onde funciona, desde então, na Marquês de Abrantes. Também virou patrimônio cultural da cidade, título concedido pela Prefeitura em 2011.

Foi no Lamas, em um ambiente enfumaçado onde se discutia o Existencialismo e outros ismos, que Torquato ouviu junto com outros estudantes a notícia da morte do presidente americano John Fitzgerald Kennedy em 22 de novembro de 1963; que atuou como figurante no filme Canalha em Crise, do também piauiense Miguel Borges; que fez questão de apresentar Ana ao seu Heli e dona Saló, seus pais, que haviam chegado de Teresina para uma visita.

Sétima parada – Outros bares ou “Ai de mim, Copacabana” 

Torquato Pereira de Araújo, neto (com vírgulas e minúsculas e tudo) foi escritor, poeta, letrista, roteirista, jornalista, ator, cineasta. Intenso para alguns; desajustado, para outros; viveu a vida numa gangorra de sentimentos, ora um poço de entusiasmo ora pura melancolia. Em muitos momentos, pelo excesso de álcool e drogas e com sintomas de depressão, buscou ele próprio a internação em clínicas de repouso. No Rio, escolheu o Hospital Odilon Galotti, que depois se transformaria no Instituto Psiquiátrico Nise da Silveira, no Engenho de Dentro.

 

No mapa afetivo de Torquato Neto pelo Rio de Janeiro, havia ainda o “Mau Cheiro”, um boteco que fazia jus ao nome e hoje serve de instalação para um requintado Astor, no Arpoador; o “Frango Esperto”, na Tijuca, um dos milhares de exemplares da mania carioca de comer galeto na rua, com o diferencial de ser o eleito de Torquato; e o Bar das Pombas, na Usina, com mesas no quintal e um riacho que corria entre elas. Foi lá que Torquato passou a última noite de sua vida. Naquela madrugada de 10 de novembro de 1972, quando chegou em casa, escreveu um bilhete que terminava assim, fazendo referência ao seu filho Thiago, com dois anos à época:

“Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”

Depois disso, ele foi. Desafinou o coro dos contentes.

 

Coordenada

Pra mim chega, de Toninho Vaz, chegou às livrarias em 2005 pela Editora Casa Amarela. Mas não foi lançado no Piauí, justo o estado-natal do poeta. Por problemas com a família do Torquato Neto, que achou abusivas as revelações da biografia, o livro teve lançamento cancelado em Teresina. “Passei mais de um ano na apuração, fui a Teresina, entrevistei amigos e familiares, refiz o percurso de Torquato pela Bahia antes de chegar ao Rio, tive acesso a documentos”, diz o autor que é jornalista e se declara um fã de Torquato. “Não trago no livro nenhuma inverdade”.

Esgotado, a única maneira de se ter acesso ao livro é em sebos. Em outubro, a Estante Virtual, maior rede de sebos online do Brasil, tinha apenas três exemplares. Conta em detalhes a vida do filho único de seu Heli e dona Salomé, o estudante de jornalismo que não chegou a concluir o curso na Faculdade Nacional de Filosofia no Rio, mas a despeito disso, tem uma das colunas mais fecundas da imprensa nacional: “Geleia Geral”, veiculada no Última Hora, diário carioca do início dos anos 70.

Sua obra só foi publicada postuamente, um ano depois de sua morte, num livrinho sob o título de Os últimos dias de paupéria, que reunia seus escritos dispersos e trazia um compacto simples com as canções “Todo dia é dia D” e “Três da madrugada”. Navilouca, o projeto de revista literária que Torquato acalentou com Waly Salomão nos últimos anos de vida, teve uma única edição em 1974.

Torquato Neto foi figura de proa da Tropicália. Redigiu o manifesto do Movimento e aparece, em pose elegante ao lado de Gal Costa, na clássica capa do disco Tropicália ou Panis et Circense, de 1968. O rompimento com os baianos se daria um pouco depois. No comecinho dos anos 70, Torquato volta sua verve estética para o cinema. Crítico do Cinema Novo, atua como o vampiro de Nosferatu no Brasil, filme de Ivan Cardoso. Na frente das câmeras, dirige O Terror da Vermelha, um super 8 rodado em Teresina em 1972.

Algumas de suas letras que ficaram famosas nas melhores vozes da MPB: “Louvação”, “Pra dizer adeus”, “A rua”, “Geléia Geral”, “Ai de mim, Copacabana”, “Mamãe Coragem”, “Let´s Play That” e “Começar pelo recomeço”. Nos final dos anos 80, Sérgio Brito, dos Titãs, compôs a melodia para os versos de “Go Back”, recuperando Torquato para uma outra geração. “Você me chama, eu quero ir pro cinema. Você reclama, meu coração não contenta. Você me ama mas, de repente, a madrugada mudou…”

 

O caminho de Torquato

Cervantes – Av. Prado Júnior, 335-B + balcão na Rua Barata Ribeiro. Copacabana.

Adega Pérola – Rua Siqueira Campos, 138-A. Copacabana.

Theatro NET Rio (antigo Teatro Tereza Rachel) – Rua Siqueira Campos, 143. 2º Piso. Copacabana.

Pracinha do Bairro Peixoto – Entre as ruas Figueiredo de Magalhães e Santa Clara.

Lamas – Marquês de Abrantes, 18. Flamengo.

(*fotos do acervo George Mendes, primo e curador do poeta)