No alto da pacata Vila de São José, interior de Minas Gerais, bonita e imponente, a Matriz de Santo Antônio abria as portas para a missa matinal nos anos de 1700. Para proteger a segunda igreja em ouro do Brasil, uma hortaliça espinhosa servia de cerca viva – mas era também comestível, sendo alvo de desejo dos fieis. O padre detestava que arrancassem. Era esperado o momento da reza final, um canto longo e em latim que retia a atenção do padre: o “ora-pro-nobis”. Era a hora do furto. A hora do ora-pro-nobis.

Trezentos anos depois a planta é a popular especiaria mineira, a Pereskia aculeata, pertencente à família das cactáceas. Ou, simplesmente, “ora-pro-nobis”, em bom português, “rogai por nós”. Na cozinha mineira, a ora-pro-nobis é talvez um dos ingredientes mais versáteis. Rica em proteínas, plantada em quintais e jardins, integra diversas receitas entre caldos e ensopados, massas e saladas e até cervejas.

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Fácil de plantar e nem tão simples de colher – sua estrutura em forma de arbusto é recheada de espinhos pontiagudos – a ora-pro-nobis está em quase todos os cardápios das cidades históricas de Minas, como Diamantina, São João Del Rey e Tiradentes, a antiga Vila São José. É lá que encontramos um restaurante na Rua do Chafariz – um monumento do século XVIII – que leva no nome a homenagem a especiaria: o resturante Ora-pro-nobis.

“O nome foi escolhido por minha mãe, mas foi uma sugestão do meu tio”, diz João Lombardi, o chefe da cozinha Ora-pro-nobis. “É um ingrediente muito nosso, do interior de Minas, o turista sempre vem procurando algo da região, achamos justo e sugestivo dar à casa esse nome”.

O ambiente é rústico e aconchegante – quase toda a decoração é composta por móveis de antiquários ou heranças da família. O próprio restaurante foi uma ideia herdada de dona Áurea Simões, mãe de João. A família é da vizinha São João Del Rey, a 184 quilômetros de Belo Horizonte. “Meu bisavô tinha uma cerâmica aqui, quando Tiradentes era uma rocinha”, conta o chefe. “A gente vinha pra fazenda dele passar férias, vimos a cidade crescer pro turismo”.

Hoje, com seis mil habitantes, a cidade cujo nome homenageia o mártir da Independência é um dos pontos de maior referência na culinária entre as cidades mineiras. Em agosto a cidade sedia um festival gastronômico onde a ora-pro-nobis é quase carro-chefe. “Além dos clássicos frango ora-pro-nobis e costelinha ensopada com ora-pro-nobis, já fizemos para o festival bolinhos, quiche e pasteis de ora-pro-nobis”, relembra o chefe.

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Fundindo receitas clássicas com os ingredientes exóticos do interior mineiro, João foi criando pratos que hoje são os mais pedidos no cardápio. O risoto ora-pro-nobis, por exemplo, leva o tradicional arroz arbóreo, refogado com cebola, azeite, manteiga e um cálice de cachaça da roça, “pra dar uma mineirice”, como ressalta o chefe. À parte ele vai fazendo um refogado com as folhas de ora-pro-nobis já picadas, cheiro verde, salsinha e cebola, bastante parmesão e um copo de vinho branco. “Esse risoto foi criado para um festival e a gente o manteve no cardápio. É uma ótima opção para vegetarianos”.

Outra pedida é um caldo de milho bem patriota: o milho-nobis, que leva ora-pro-nobis, legumes e milho verde batido – pode ser da espiga, ou de lata. O resultado é uma sopa verde e amarela, um dos pratos que mais saem da cozinha.

Bastante rica em proteína, a ora-pro-nobis pode muito bem substituir a carne em caldos, omeletes e refogados, – há ainda quem prefira o consumo cru em saladas. “Eu acho que cozido ele ressalta bem o aroma e o sabor. Se eu te der uma folhinha crua você não vai perceber facilmente a textura”, diz o chefe.

No restaurante Ora-pro-nobis, onde a proposta é almoçar no jardim com forno a lenha e cozinha aberta, a planta pode ser vista próxima à cerca: folhinhas verdes pequenas e médias, com tronco repleto de espinhos, semelhante a uma roseira. Não é propriamente dali que vem o ingrediente chefe naquele restaurante – João compra de senhoras da região que já lhe oferecem o produto ensacado e desfolhado. Paga 20 reais numa sacola padrão. “Industrializado eu nunca vi, como já surgiu no mercado o sangue sintético, em pó, pra você fazer o molho pardo. A ora-pro-nobis não deve demorar a aparecer por aí não”, ri.

Nem todo mundo é aberto para os exóticos sabores mineiros. “Os clientes ficam com o pé atrás com medo de provar e me perguntam ‘parece com o quê, João?’”, conta o chefe. Questão difícil de responder até para quem prova o prato tentando puxar da memória e do paladar alguma referência. Algo mais ou menos parecido pode ser o quiabo, no que diz respeito a textura: a ora-pra-nobis é uma folhinha carnuda que, quando cozida, também produz uma “liga” engrossando o caldo, embora existam técnicas culinárias para eliminá-la. “Eu sempre respondo: ‘parece com nada’. Ela tem o sabor dela, o aroma dela, a história dela”, defende o chefe. “Sobre o quiabo, a textura pode até parecer. Mas o gosto, nada a ver”.

Restaurante Ora-pro-nobis – Rua do Chafariz, 37, Centro, Tiradentes-MG.

O que provar:

Frango Ora-pro-nobis – acompanha arroz, feijão, angu e couve e serve duas pessoas.

Risoto Ora-pro-nobis – individual.

(Matéria publicada na Revestrés#24 – Março/Abril 2016)