Rio de Janeiro, 35mm, preto e branco, 125 minutos, 1964. Definições técnicas não seriam suficientes para caracterizar um filme que se tornaria emblemático no cenário cinematográfico. Há meio século, um jovem de 25 anos fez o que se tornou marco do cinema brasileiro.

Escolhido para representar o Brasil no Festival de Cannes, em 1964 na França e indicado à Palma de Ouro, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha completa 50 anos em 2014. Inspirado nas histórias populares do Nordeste, Glauber Rocha concebeu um filme que resiste cinco décadas depois de produzido.

Prêmios não faltaram: Crítica Mexicana no Festival Internacional de Acapulco, México; Grande Prêmio Festival de Cinema Livre, na Itália; Náiade de Ouro no Festival Internacional de Porreta Terme na Itália, todos em 1964. Em 1965, o Troféu Saci de Melhor Ator Coadjuvante foi para Maurício do Valle como Antônio das Mortes e, em 1966, o filme ganhou o Grande Prêmio Latino Americano no I Festival Internacional de Mar del Plata, na Argentina.

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E não foram por acaso. Na ficha técnica, produção de Luiz Augusto Mendes; roteiro de Walter Lima Jr e Glauber Rocha; direção de fotografia e câmera de Waldemar Lima, cartaz de Rogério Duarte e, claro, direção do próprio Glauber.

A trilha sonora de Sérgio Ricardo não poderia se tornar mais simbólica. Na canção final do filme, a perseguição de Corisco é musicada. “Se entrega, Corisco!/ Eu não me entrego não!”. Encontrado por Antônio das Mortes, Corisco deixa seu recado na hora final: “Mais forte são os poderes do povo!”. O refrão ficaria conhecido até hoje: “O sertão vai virar mar / E o mar vira sertão!”. No desfecho, o último verso explica a que veio o fime: “Que a terra é do homem/ Não é de Deus nem do Diabo!”.

O filme se passa quando Manuel, interpretado por Geraldo Del Rey, revolta – se com a exploração de que é vítima por parte do coronel Morais e o mata durante uma briga. Começa então a fuga de Manuel e sua esposa Rosa, vivida por Yoná Magalhães. Eles são perseguidos por jagunços até se integrarem aos seguidores do beato Sebastião, feito por Lídio Silva no lugar sagrado de Monte Santo.

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Ao mesmo tempo, o matador de aluguel, Antônio das Mortes, vivido por Maurício do Valle, extermina os seguidores do beato. Isso faz com que o casal tenha de continuar fugindo e se encontre com Dadá, interpretada por Sônia dos Humildes e Corisco, cangaceiro remanescente do bando de Lampião.

Do elenco, apenas Yoná Magalhães e Othon Bastos continuam vivos. Corisco é interpretado por Othon Bastos, então com 31 anos. Já era seu quarto filme, depois de Sol sobre a Lama, Tocaia no Asfalto e O Pagador de Promessas, todos de 1962.

Hoje com 81 anos, contou por telefone como este papel foi divisor de águas na sua carreira. “Após Deus e o Diabo, passei quatro anos sem filmar outro papel. Foi uma experiência tão forte, tão importante, que eu achava que não podia destruir essa

imagem. Só voltei a filmar quatro anos depois em Capitu”, filme de 1968 dirigido por Paulo Cesar Saraceni, em que Othon Bastos interpretou Bentinho.

O longa-metragem foi gravado em Monte Santo, Feira de Santana, Salvador, Canché (Cocorobó) e Canudos (BA) e teve as filmagens concluídas em quatro meses. No entanto, Othon Bastos precisou gravar o papel de Corisco em apenas 20 dias. “O meu papel foi rápido, mas eles ficaram filmando”, conta.

Os moradores de Monte Santo fazem os figurantes do longa e aparecem nas tomadas de peregrinação. “Era uma estrutura pobre, muito pouca, de um cinema que não era de milhões. Era um filme com o mínimo de dinheiro e o máximo de coragem, na aventura e certeza que se estaria fazendo um bom filme”, relata.

O ator Adriano Lisboa havia sido escolhido para fazer o personagem Corisco, mas comprometeu-se com outro trabalho. Assim, Othon foi chamado para o papel. “Eu tive que pedir licença dos ensaios de uma peça e ir para o alto sertão gravar. Fui levado de jipe até a cidade Monte Santo, numa estrada terrível de 1963, onde conheci os colegas Geraldo Del Rey, Maurício do Valle e Yoná Magalhães”.

deus_e_o_diaboMais de uma vez, Othon Bastos define Glauber Rocha como um vulcão. “Ele ficava por trás das câmeras, ia jogando energia pra você e você ia fazendo as coisas como ele queria”, destaca sobre o diretor.

O longa é marcado por curiosidades. No roteiro original de 139 páginas, a figura de Lampião aparece numa série de flashbacks. No filme, ele é encarnado, num sentido quase mediúnico, pelo próprio Corisco. “Se você reparar, o filme tem duas visões, até a entrada do cangaceiro é uma coisa, depois é outra. Tinha flashback e isso foi tirado para que Corisco conte a história”, fala Othon Bastos sobre a experiência.

Para uma produção que marcou o Cinema Novo e a história do cinema brasileiro, Othon Bastos lamenta o esquecimento que sofre o longa. “O Brasil enterrou Glauber Rocha e toda a sua poesia. O Governo não pensa em cultura. O Glauber era uma pessoa que tinha que ser lembrada sempre”, critica.

Meio século após a produção do filme muita gente se dedica ao estudo dos filmes de Glauber Rocha. Alexei Bueno, poeta, ensaísta brasileiro e diretor do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) do Rio de Janeiro é autor de Glauber Rocha: mais fortes são os poderes do povo!, onde analisa cada filme do diretor. Porém, não se denomina pesquisador, mas sim, grande apaixonado pelo cinema.

“Esta paixão nasceu exatamente na noite em que vi Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 15 de março de 1977, no Cineclube Macunaíma no Rio de Janeiro. Eu tinha 13 anos, já tinha visto filmes, mas nada como ocorreu naquela sessão, uma espécie de choque estético, inesquecível. Escrevi um livro sobre um dos cineastas que mais admiro”, considera.

Alexei Bueno faz uma equiparação didática: a produção de Glauber Rocha está para o cinema brasileiro como Villa – Lobos está para a música brasileira. “Não imagino comparação mais simples e perfeita”. Segundo ele, para que uma grande obra de arte seja marco não existe mistério algum: basta ser uma grande obra de arte. “Deus e o Diabo na Terra do Sol é, sem favor, um dos maiores momentos do cinema falado, de toda a história do cinema, pela concepção, pela força épica e lírica, pela visão de profundidade ímpar do país, pela mise-en-scène literalmente genial, por tudo isso e muito mais”, analisa.

No conceito de Bueno, Deus e o Diabo na Terra do Sol, Terra em Transe e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, todos de Glauber Rocha, consistiriam na Trilogia Brasileira. “Formam uma visão completa do Brasil. Uma visão trágica do nosso irracionalismo, do nosso subdesenvolvimento político, das espantosas sobrevivências arcaicas que, infelizmente, estão mais vivas do que nunca entre nós”, critica.

Essa relação fez com que Alexei Bueno, com apenas 18 anos, não suportasse a ideia de que não viria a conhecer Glauber Rocha. “Fui ao velório e lá passei toda aquela fria e triste madrugada de agosto de 1981. Eu tinha 18 anos, e nunca imaginei que não viria a conhecê-lo. Glauber foi um gênio do cinema, um gênio escancarado, escandaloso”.

Na Terra do Sol 

Bahia e Rio de Janeiro. Em um, Glauber Rocha nasceu. No outro, morreu. No site Templo Glauber, Dona Lúcia Rocha, mãe do cineasta, falecida em janeiro deste ano, reuniu e divulgou a obra do diretor. Juntamente com a irmã, filhos e neta do cineasta, o Templo foi fundado em 1983, dois anos após a morte dele.

No espaço, foi publicado trecho onde Glauber Rocha explica de onde surgiu a ideia do filme: “Eu parti do texto poético. A origem de ‘Deus e o Diabo…’ é uma língua metafórica, a literatura de cordel. No Nordeste, os cegos, nos circos, nas feiras, nos teatros populares, começam uma história cantando: eu vou lhes contar uma história que é de verdade e de imaginação, ou então que é imaginação verdadeira. Toda minha formação foi feita nesse clima. A ideia do filme me veio espontaneamente”, conta em depoimento disponibilizado no site.

Glauber Rocha nasceu em 1939 em Vitória da Conquista, Bahia. Foi representante do Cinema Novo, movimento cinematográfico surgido no Brasil, na segunda metade dos anos 50. Juntamente com Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e outros, Glauber Rochar inaugurou uma perspectiva crítica sobre os filmes produzidos no Brasil, que refletiam sobre situações socio – políticas do país e procuraram contrapor interesses industriais no cinema.

Morreu em 1981 no Rio de Janeiro, vítima de complicações respiratórias. Foi velado no Parque Lage, cenário de Terra em Transe, em meio a grande emoção e exaltação, cena esta que foi registrada no documentário Glauber o Filme, Labirinto do Brasil, de Sílvio Tendler.

Foi casado com a atriz Helena Ignez, posteriormente esposa de Rogério Sganzerla, representante do Cinema Marginal. Pai de cinco filhos, Glauber Rocha foi idolatrado por uns e odiado por outros. Enérgico e revolucionário, na metáfora do filme que lhe deu destaque, Glauber Rocha não foi nem Deus, nem o Diabo.