“Se eu pudesse, eu me escondia de novo”, disse Dora Miranda, logo após abrir a porta de sua casa na rua José Marques da Rocha, Memorare, zona norte de Teresina. Após quase quatro meses de tentativa de localização, depois de entrevistas, o fim das sombras dessa artista. Em frente a sua casa, com o portão que se fechava, o seu projeto: um gigantesco e contínuo mural com mais de 500 metros de extensão, nada discreto, reproduzindo falas e pensamentos de centenas de personagens da história, tomando duas ruas e hipnotizando quem por elas passam.

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Por Maurício Pokemon

Em um começo de conversa, o que para muitos é arte, para Dora parecia um alívio. O problema da rua José Marques da Rocha era o muro. Há uns 15 anos, uma cerca de arame farpado virou uma massa cinzenta que engoliu a calçada e começou a transformar um tanto em nanico quem passava pela viela. “Eu não gostava da minha rua, achava sem graça” – conta ela – “parecia um beco sem saída”. Do lado de lá, um terreno baldio que hoje pertence a um convento. Do lado de cá, as casas apertadas de uma classe média-baixa. No meio dos dois, Dora Miranda, “a Mulher das Frases”, com uma lata de tinta branca e um pincel de dois reais na mão.

Criadora quase involuntária de um folclore próprio no bairro, foi com letra de forma, escrita cautelosa e milimétrica, paciência de Jó e “inspiração que Deus deu”, que em 2002 sua figura tímida e anônima abriu as primeiras aspas do que hoje é o gigantesco e inquietante mural.  A tarefa divide ares de missão e hobby. “Não sei de onde veio a ideia de começar a pintar, quis começar só com uma frase, mas logo não me contive e passei a escrever sempre aos domingos”.

A devoção pela religião e espiritualidade é atestada em várias passagens do Novo e Antigo Testamento grafadas no muro. Mas evangélica batista que passou a olhar para frases e seus destaques após ser, anos atrás, abordada em um ônibus por uma fiel de bíblia na mão, iniciou o ciclo de citações com filosofia e ética social de Confúcio, o chinês. “Homens superiores exigem tudo de si, homens inferiores exigem tudo dos outros”, aponta a frase de “inauguração”. Mas Dora, a teresinense, guarda um pouquinho de malandragem na lembrança de tanta sabedoria.

“A primeira frase eu escrevi à noite” – lembra, antes da calma quase ritualística de pintar nas tardes de domingo – “Eu tinha medo das pessoas me verem, então fiz na frente do portão da minha casa. Toda vez que passava alguém por perto, eu abria o portão e me escondia”. O simples medo de gente foi gradualmente abrandado. “Depois passei a ter medo de polícia. Um dia uma viatura passou lentamente, não deu tempo de me esconder. Tremi, mas logo foram embora. Continuei como se nada tivesse acontecendo”, revela com gosto.

O maior receio, contudo, passava longe dos homens de farda verde. Vinha em preto – a cor do carro do antigo dono do terreno murado da rua José Marques da Rocha, o desembargador Paulo Freitas. “Ele nunca chegou a brigar, falar nada. Uma vez parou o carro do meu lado enquanto eu pintava o muro. Olhou e foi embora. Quem cala consente, né?”.

Eu tinha medo das pessoas me verem, então fiz na frente do portão da minha casa. Toda vez que passava alguém por perto, eu abria o portão e me escondia

Se o silêncio do excelentíssimo desembargador na verdade era um jeito sofisticado de apreciação a arte de Dora, ninguém sabe, mas apenas que ele durou pouco. “Acho que em 2008 o terreno foi vendido”, relata Dora. As novas proprietárias também usavam uniformes, também tinham veículo oficial e também botavam medo. Eram freiras. Agora era uma Kombi branca que apressava o pincel e os passos de Dora. E gelava a espinha também.

Não deu para correr e o flagra aconteceu. “Finalmente me pegaram, pararam a Kombi e as freiras perguntaram se eu tinha autorização para estar pintando o muro”, Dora resgata a cena de 2009. “Aí tive que dizer que não, mesmo o muro (de quase 500 metros) já estando quase ‘cheio’. Falaram que eu tinha que conversar com uma administradora e me pediram para parar”. Abalada, Dora ainda levou fotografias e justificativas para a administração do terreno. Três semanas depois a própria madre superiora telefonou ordenando que ela parasse de escrever no muro.

“Fiquei uma duas semanas sem pintar, em casa, pensando, triste. Até que não me contive: fui lá e continuei.”, confessa. Bem, se existe uma conversão que às vezes não pede licença, sem dúvidas ela é artística. “Logo terminei a rua (José Marques da Rocha) e passei para a Barras (perpendicular)”. Hoje, todo o entorno do terreno é grafado. Aos olhos das irmãs católicas, venceu a insistência, criatividade e ingenuidade de Dora que, de uma forma bem democrática, coloca, entre outras, frases de Santo Agostinho ao lado de Nietzsche, Lulu Santos emparelhado à Lula e Saint-Exupéry dividindo espaço com Raul Seixas.

Por mais intuitivo e simples que possa parecer o feito de Dora Miranda, e assim o é, “gosto de compartilhar frases porque vai que alguém passa e acha bonito”, toda a magia e imagética do grande mural do Memorare é, por quaisquer que sejam os atalhos, pautada na mais atual das discussões – a transformação do espaço. “É um aproveitamento. Estou agregando valor ao muro, colocando conhecimento, sabedoria, cultura e beleza”, articula.

No meio da vida da Dora havia um muro. Ele não iria sair do lugar. O calçamento é humilde, a vizinhança recatada e a rua isolada, mas se por lá ninguém conversar com você, não se preocupe. O muro fala.

(Matéria publicada na Revestrés#07 – Março/Abril 2013)