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Washington Gabriel por Maurício Pokemon

“A senhora pode dar uma palavrinha aqui, dona Marcilene”, pede Washington Gabriel. “De novo?”, responde tímida e sorridente. Dona Marcilene não está acostumada com flashes e entrevistas, mas mesmo assim aceita conversar. “Tem gente que olha pra mim e diz: ‘Ói, você é aquela lá da foto, é? Tá idêntica! A senhora é divulgada, hein?!’”, diverte-se.

Ela foi uma dos painéis pintados por Washington Gabriel na Vila Jerusalém, comunidade da zona Sul de Teresina. Em sua pequena casa, acomodam-se marido, filha, genro e quatro crianças. “Três eu peguei pra criar”, conta. Moradora há 15 anos do local, ela coordena o Boi Mimo de Santa Cruz, grupo de bumba meu boi com crianças e jovens da vila. “Às vezes a gente dá uma trégua”, diz sobre a dificuldade em manter uma atividade artística sem apoio, arcando com os custos de maneira independente.

Washington Gabriel, também conhecido como WG, poderia ter escolhido muitas comunidades de Teresina, mas escolheu essa em especial: conhecia os moradores de perto e queria mostrar quem eram realmente – para os outros e para eles mesmos. “Eu morei no bairro Redenção, minha esposa tem casa aqui há muito tempo, eu tinha vínculo com o local”, explica.

A ideia surgiu quando o artista grafitou um rosto, há dois anos, na entrada da vila. “Eu sempre estou pintando realismo e, por admirar um artista ou liderança, decidi homenagear pessoas do próprio bairro”. Washington Gabriel enxergou o que os próprios moradores não se deram conta: a vila era muito mais que apenas violência. “É um lugar muito massacrado pela mídia”.

Basta dar um google em “Vila Jerusalém Teresina” para acreditar que a comunidade se resume a assassinatos, tráfico de drogas e atuação policial

Basta dar um google em “Vila Jerusalém, Teresina” para acreditar que a comunidade se resume a assassinatos, tráfico de drogas e atuação policial.  Porém, WG transformou o muro das ruas em espelhos. A comunidade enxergou seu reflexo nos painéis: eram artistas de circo, trabalhadores, crianças, donas de casa, avós, chefes de família, aposentados. “Jeru: entra pra tu ver”, é como o artista chama o projeto de gente que desafia a vida, e é desafiada por ela.

Bruno Leônidas, Jamaica, Érick, dona Marcilene, Joana Úrsula, dona Romana, seu Jatobá. Todos eles têm em comum o cotidiano de uma comunidade privada de serviços públicos e criminalizada pelos meios de comunicação. “Aqui, o único braço é a Secretaria de Segurança. Se o estado estivesse presente com diferentes opções, as pessoas teriam chance de tomar outras decisões”, acredita o artista.

Essa percepção foi apenas o estopim para o início da pintura dos painéis. “Foi um estalo para eu ter mais convicção de fazer”. O projeto foi contemplado com o Prêmio de Criação em Artes Visuais da Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves, assim como o projeto de outros seis artistas, e prevê a realização de 10 painéis de pessoas representativas da Vila Jerusalém. “Eu passei por um laboratório para amadurecer o conteúdo e a contextualização do projeto. Isso me deu tempo para estar dedicado e mergulhar no projeto, conhecer de verdade as pessoas, não só pintá-las”, esclarece.

A vila não deve se chamar Jerusalém à toa. Entre o Hospital de Urgência de Teresina – HUT e o Estádio Albertão –localização considerada privilegiada, as casas se espremem morro acima e abaixo numa comunidade invisibilizada pelas muralhas do preconceito. “A situação de vulnerabilidade social é muito grande num local sufocado dentro de um terreno valorizado”, comenta WG, referindo-se ao caso de um morador que teve seu currículo reprovado em entrevista de emprego ao mencionar seu endereço. “Eu mesmo já fui abordado pela polícia”, revela.

Porém, as adversidades da vida são encaradas com muito bom-humor. “Eu sou bonito, cara”, conta o artista sobre o pedido de moradores que até se oferecem para aparecer nos murais. “Essas fotos dele mexeram com a vila, sabe? Mexeu! Antes tinha uma divulgação muito ruim, mas ele trouxe o que é bom”, admira dona Marcilene.

Washington Gabriel transformou o muro das ruas em espelhos. A comunidade enxergou seu reflexo nos painéis e viu que era muito mais que apenas violência

A comunidade participa e dá pitaco. “Dão altas ideias, discutem técnicas, contexto, cores e até sugeriram colocar iluminação noturna nos painéis”, conta WG ao grafitar o mural de Joana Úrsula, moradora de 103 anos e mulher mais velha da comunidade, com boa parte dos filhos, netos e bisnetos morando na Vila Jerusalém. Enquanto isso, as crianças observam atentamente cada traço, interessadas em aprender a desenhar e pintar. “É assunto na rua e o efeito dos grafites foi trazer um pouco de autoestima”, diz ele.

Dona Romana concorda e orgulha-se de ser um dos painéis. “Fica de lembrança, né?”, diz acanhada, espantando-se com a chegada de nosso fotógrafo: “Menino, e tu vai tirar minha foto, é?”. Uma das primeiras moradoras da Vila Jerusalém, dona Romana ajudou a fundar a comunidade, assim como Jamaica e seu irmão. “Eu vivo aqui desde a invasão, há mais de 30 anos. Fui eu quem bloqueei, capinei, toquei fogo, fiz minha lona”, conta sobre sua casa, hoje reconstruída por um projeto habitacional.

A pequena Riquele, de dois anos, aparece erguendo uma caneca de plástico, oferecendo-nos água e apegando-se à barra da saia da avó. “Eu criei meus filhos e meus netos. Trabalhei em restaurante, vendendo verdura, vendendo comida em festa”, relembra dona Romana. Aqui é morte, é briga, é roubo. Mas tem muita gente boa, né?”, garante.

Recentemente foi implantado sistema de câmeras na vila, mas o coro é uníssono para denunciar o que realmente falta: escola e creche com alimentação, posto de saúde, lazer, segurança. “Falta tudo isso”, resume. “Se esses meninos estivessem com a mente ocupada não iam fazer coisa errada”, queixa-se dona Romana.

Os habitantes deparam-se com muitas dificuldades e poucas saídas. “O mais grave, é a falta de perspectiva para a juventude”, diz Washington Gabriel, que escolheu pintar mais que as paredes de casas da Vila Jerusalém. “Escolhi pintar as diversas faces que a cidade não quer ver”.

(Matéria publicada na Revestrés#28 – dezembro de 2016 / janeiro de 2017)