Ida confere a enorme panela de feijoada enquanto pergunta da cozinha: “Alguém mais quer caipirinha?”. Suas amigas cortam couve e frutas. Sala e cozinha formam um espaço integrado onde circulam quinze pessoas àquela manhã. Tem gente do Maranhão, São Paulo, Piauí, Minas Gerais, Ceará, Rio de Janeiro, Itália e dois jornalistas chineses que transmitem tudo com flashs ao vivo para o portal ifeng.com – o maior portal da China, com audiência maior que CNN e BBC.

img_7041Essa não é a primeira vez que o editor Hong Ji Fan vem ao Brasil. Durante a Copa do Mundo, em 2014, ele esteve no Rio de Janeiro e em Recife. Mas conta que suas pautas se focaram nos jogos. Agora, durante as Olimpíadas no Rio de Janeiro, eles buscam algo diferente: querem contar como vivem os brasileiros, o que comem, bebem, conversam. “O Brasil e a China são tão distantes, geográfica e culturalmente, que dessa vez queremos entender melhor o Brasil”, afirma Hong Ji Fan.

Mas não foi simples assim entender o que ele falou. O editor nos respondeu em mandarim, que foi traduzido para o inglês por Olívia Ma, jornalista chinesa, e por sua vez traduzido para o português por Renata D`Elia, jornalista brasileira, corresponde do ifeng.com no Brasil. Assim, rodeado de tanta gente, Hong Ji Fan sorriu: “Estou me sentindo uma celebridade” – e fez disso mais um flash ao vivo para o portal.

Num dos espaços mais democráticos do país naquele dia, as pessoas falam alto, sorriem, contam piadas, disputam se é melhor caipirinha ou morrito enquanto o volume das vozes e risos vai aumentando. A televisão ligada na transmissão das Olimpíadas finalmente é lembrada quando aparece ao vivo a competição de judô: Brasil e China disputariam o peso leve masculino (até 73 quilos). Hong Ji Fan se concentra no espaço que encontra mais próximo à TV. Cheio de brasileiros em volta, que automaticamente se convertem em torcedores fanáticos, o jornalista Chinês mantém a calma e simpatia, enquanto a torcida em maioria repete “Vai, Brasil!”.

A luta é entre o paulista Alex Pombo e o chinês Saiyinjrigala. Pombo começa bem e a animação da torcida brasileira aumenta. Hong Ji Fan arrisca um palpite: “O brasileiro vai vencer”. Mal ele volta os olhos à TV e, nos quatro segundo finais, o chinês vence o brasileiro. Cheios do espírito olímpico, os brasileiros desistem de suas galhofas e sinceramente parabenizam Hong Ji Fan. Era dia 8 de 8 de 2016 (que dividido por dois é oito). E oito é o número de sorte na China. Vai ver foi isso.

A dona da casa é Ida, maranhense que vive há 30 anos no Rio de Janeiro, mãe de Caio e Júlia. Ela trabalha como ferroviária e vive na Tijuca, numa vila de casas onde é a única moradora a não ser da mesma família. Sua casa ocupa o topo do morro. É branquinha, tem uma piscina pequena, piso de cimento, cadeira de balanço e é quase sem paredes, formando um espaço aberto e aconchegante. Ida é sorridente e amigável. E como os chineses chegaram até ela? Ida e os filhos já receberam intercambistas chineses que faziam trabalho voluntário no Morro do Macaco. Daí partiram os contatos. Pela casa, as preferências da família brasileira vão deixando rastros: livros de poesia, camisas do Fluminense, bandeira do Império Serrano e um cartaz “Fora Temer!”.

Todas as atenções voltam a se concentrar quando um dos amigos retorna com uma tocha olímpica oficial. Como assim?! Ele conta que pegou com outro amigo que trabalha na TV Globo. No Rio de Janeiro é assim: tudo o que está muito longe pode, de repente, ficar muito perto. A brincadeira vira a passagem da tocha entre todos os presentes.

Em Pequim ou Nova York eu apenas ligo para o delivery – Olivia Ma, repórter

Queremos saber da jornalista chinesa o que ela está achando de vivenciar uma típica casa brasileira. Ela desconfia: “estamos numa típica casa brasileira?”. Olivia Ma, repórter que faz as passagens ao vivo, conta que atualmente reside em Nova York e o que está achando mais curioso é o fato de todos cozinharem juntos, ajudando-se. “Em Pequim ou Nova York eu apenas ligo para o delivery”, conta. Ela também observa que na China costuma-se reunir a família, mas não pessoas tão diferentes, de diferentes partes do país e do mundo. “Deve ser isso que chamam a paixão brasileira”, observa. A jornalista ainda comenta: “Na China não se bebe assim na frente dos mais jovens”.

O portal ifeng.com tem feito, ao todo, duas horas de ao vivo do Brasil diariamente, mostrando casas, costumes, cultura, locais menos turísticos e mais originais. A enorme população chinesa (1,3 bilhões de habitantes, quase um quinto da população da Terra) faz do portal o de maior audiência no mundo. A China também tem a maioria dos usuários de celulares e o maior número de usuários de internet banda larga do planeta, tendo ainda os dois maiores provedores de internet do mundo. Toda essa potência técnica não é garantia de espaço democrático. A China também é conhecida por ter a internet sob forte vigilância oficial. Mas enquanto as imagens da casa de Ida circulam o mundo, Olivia Ma admite: está mesmo curiosa é para comer a tal feijoada.

Quando a mesa é posta a algazarra atinge seu volume máximo. Os brasileiros querem posar para fotos com o panelão, antes de se servirem. Os chineses observam, tomando certa distância, e são os últimos a se servirem. Hong Ji Fan não come da feijoada, apenas muito arroz e uma muqueca que Ida preparou, caso os chineses estranhassem nosso prato. Brasileiro na cozinha tem sempre uma saída generosa. Já Olivia Ma comeu, repetiu, perguntou o nome dos ingredientes mais de uma vez e transmitiu ao vivo sua experiência, empolgadíssima. Mais tarde, aproveitando os ares democráticos do Brasil, Hong Ji Fan postou em seu portal que não gostou da comida e que ela cheirava mal.

Na hora da sobremesa, serviu-se um pavê. Foi quando alguém soltou a piada: “É pra ver ou pra comer?”. Não restava mais dúvidas: era uma típica casa brasileira. Renata, a jornalista brasileira que ajudava os chineses a se comunicarem, suspira: “Que pena que eu não vou conseguir traduzir isso pra eles!”.

(Publicada na Revestrés#26 – Agosto/Setembro 2016)