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“Meu amor se você for embora, sabe lá o que será de mim”. O ano era 1989 e a cantora Marina, hoje Marina Lima, soltava esses versos, talvez, a cada 5 minutos nas rádios e nas TVs de todo o Brasil. Pouca gente ainda hoje sabe, mas são versos de Antonio Cicero, um dos mais prolíficos compositores e intelectuais do Brasil, hoje candidato à cadeira 22 da Academia Brasileira de Letras. Filho de piauienses, irmão de Marina Lima, Antonio Cicero vai das letras pop à filosofia. Ensaísta, mistura, sem que percebamos muito bem isso, sua erudição e conhecimento em grego e latim (que o leva a ler, no original, Homero, Ovídio, Píndaro e outros clássicos) a um olhar delicado e carinhoso de poeta coloquial ao seu Rio de Janeiro. Parceiro, além de sua irmã, de Waly Salomão, João Bosco, Cláudio Zoli, Frejat e Lulu Santos, Antônio Cícero promete se dedicar mais à poesia, após completar 70 anos. E, aqui, fala um pouquinho com a Revestrés.

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Tomás de Aquino cunhou a frase: “Mas a causa, porque o filósofo é comparado ao poeta, é esta: um e outro tratam das coisas que devem ser admiradas”. Já a intelectual espanhola Maria Zambrano afirma que, em certo momento, poesia e metafísica se tornam inconciliáveis ou, talvez, independentes, em especial pelo fato da filosofia se propor à busca da “verdade” e a poesia estar ligada à “vontade”. Para você, onde poesia e filosofia se tocam e se afastam?

Escrevi um livro (Poesia e filosofia) sobre esse assunto. Para mim, elas são empreendimentos muito diferentes. Se eu tiver ideias que considere filosoficamente relevantes e originais e quiser escrever um ensaio sobre elas, basta que me aplique a desenvolvê-las e explicá-las. Desde que eu trabalhe e não desanime, o ensaio ficará pronto, mais cedo ou mais tarde. Não é assim com a poesia. A poesia é ciumenta e não aparece a menos que eu lhe dedique todo o meu espírito, todos os meus recursos, todas as minhas faculdades, sem garantia alguma de que, mesmo fazendo tudo o que ela exige, eu consiga escrever um poema. Não me basta trabalhar para que nasça um poema. Ele provém também de algo imponderável, que não depende de mim. Ao mesmo tempo, enquanto ninguém é considerado poeta, a menos que tenha escrito ao menos um autêntico poema, um filósofo pode ser filósofo ainda que, como Sócrates, jamais tenha escrito uma linha de filosofia. Logo, são empreendimentos muito diferentes a filosofia e a poesia, pois a filosofia está no pensamento do filósofo, enquanto que a poesia está no poema mesmo.

Há poucos dias Bob Dylan tornou-se o primeiro letrista-compositor a receber um Nobel de Literatura. Isso gerou certa polêmica em todo o mundo, em especial no meio acadêmico. Você, intelectual, poeta, letrista e filósofo, como recebeu a notícia do Nobel de Dylan e como percebe essa polêmica?

O Prêmio Nobel a Dylan ajuda a jogar na lata de lixo um velho preconceito que era, aliás, baseado em ignorância no que toca à história da literatura. Afinal, sabe-se que o primeiro grande poeta da tradição ocidental, Homero, nem sequer conhecendo a escrita, cantava seus poemas para seu público. Assim também faziam os poetas líricos que, como a própria palavra “lírico” indica, tocavam a lira enquanto cantavam. Ou seja, a grande poesia da Grécia antiga era letra de canções. A música dessas canções não chegou até nós, mas as letras chegaram, pois foram escritas. E essas letras – de poetas extraordinários como Álcman, Safo, Anacreonte, Píndaro etc. – são alguns dos maiores poemas da literatura ocidental. Por que, então, fingir que não há, também hoje, grandes poemas na forma de letras de canções? Aqui, no Brasil, basta mencionar canções de poetas como Noel Rosa, Cartola, Vinícius de Moraes, Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Chico Buarque etc. etc.

Como analisa a aparente ascensão do pensamento conservador mundo afora? Isso faz parte de um movimento pendular histórico ou você percebe alguma motivação em especial?

Nos Estados Unidos e na Europa em geral o terrorismo islamista aumentou a xenofobia já existente, e esta foi explorada até às últimas consequências pela direita de cada país. Curiosamente, tanto o terrorismo islamista quanto a xenofobia fazem parte do mesmo movimento de horror à modernidade. A modernidade não pertence a nenhum país ou grupo de países. Ela não pertence ao “Ocidente”, por exemplo. E ela não pertence a nenhuma época particular. A modernidade é o movimento pelo qual as crenças tradicionais e seus objetos – como, por exemplo, as divindades por elas cultuadas – passam, em consequência da crítica a que são submetidas pela razão, do centro para a periferia, e a própria razão crítica passa da periferia para o centro do mundo. Por isso, os defensores das crenças e práticas religiosas obsoletas têm horror à modernidade e, como no Brasil, fazem tudo o que podem contra a afirmação racional dos direitos humanos.

Você é um dos candidatos à cadeira 22 da Academia Brasileira de Letras, que era ocupada por Ivo Pitanguy. Curiosamente, você e Francisco Weffort receberam a mesma quantidade de votos, um resultado relativamente raro e curioso. Como vê esse “empate”? E, havendo novo empate, podem ir para uma disputa de pênaltis entre intelectuais, por exemplo?

Não, não é prevista nenhuma disputa de pênaltis. Os empates podem continuar até um de nós desistir.

(Matéria publicada na Revestrés#28 – dezembro 2016/janeiro 2017)