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(Foto: Mauricio Pokemon)

“Tá calor em Teresina?”, pergunta Paulo Lins no meio da entrevista. O carioca conversou com a gente pelo Skype e aparentava despreocupação com a maior parte das nossas interrogações, exceto quando o assunto era o racismo. “É só você olhar e você vê. Está estampado que a gente sofre racismo!”.

Fã de Marcelino Freire, autor de “Nossos Ossos”, livro que está adaptando para o cinema, Paulo Lins perdeu as contas de quantas cópias Cidade de Deus (1997) vendeu. “100 mil?”, pergunto. “Ih, sei lá, muito mais que isso aí!”.

Levou 10 anos para escrever a obra, traduzida posteriormente para o inglês, francês, italiano e espanhol, e que foi adaptada para o cinema por Fernando Meirelles e Kátia Lund. Só 15 anos após o lançamento do trabalho pelo qual ficaria famoso estreou Desde que o samba é samba (2012). “O livro vendeu bem, mas acredito que virando filme venda mais (risos)”.

Trejeitos de malandro do Rio de Janeiro, o escritor redigiu episódios da série Cidade dos Homens, fez o roteiro do filme Quase dois irmãos, de Lúcia Murat, pelo qual recebeu o prêmio de melhor roteiro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e foi colaborador da novela I Love Paraisópolis. “Fiz novela, fiz cinema, fiz minissérie, fiz poesia, fiz romance. O que tá pintando eu pego e faço. Eu gosto de escrever, seja lá o que for”.

O sucesso de Cidade de Deus ainda te persegue? Qual o efeito dessa obra em você até hoje?

(Risos) Eu sou marcado por isso né? Foi um livro que dominou a minha vida toda por um tempo. O livro foi traduzido no mundo todo, virou filme, o filme teve quatro indicações ao Oscar. Depois, vários livros e filmes sobre essa temática foram lançados. Você me pergunta isso hoje, depois de quase 20 anos…Quantos anos você tem? (Respondo: 23). Quando o livro foi lançado você tinha cinco anos! Aí você cresceu (fala pausadamente), virou uma mocinha e vem me perguntar sobre isso hoje. Por você ter me perguntado, já responde a pergunta: isso me marca até hoje.

Suas narrativas mais conhecidas se passam na periferia, no Rio de Janeiro. Quanto de você tem nas suas histórias?

História pessoal não tem nenhuma. Cidade de Deus se passa em Cidade de Deus (favela carioca onde morou). Desde que o samba é samba se passa na periferia, mas quer dizer, são os anos 1920, não é da minha época. Eu estava pensando em escrever esse livro antes de Cidade de Deus porque é uma história importante, é a cultura afro-brasileira, que também fala de umbanda. Eu não vivi aquela realidade, eu não fui criado no samba, não tem nada a ver com minha vida.

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(Foto: Mauricio Pokemon)

Cidade de Deus fala de violência, enquanto Desde que o samba é samba, de alguma forma, fala de alegria. Que cara tem a identidade negra, atualmente, no país?

(Pausa) A cultura negra é uma coisa tão grande. Nós estamos em guerra. É a guerra da cultura negra contra a cultura branca. Sempre foi assim. As grandes guerras no mundo são culturais. A guerra dos judeus contra os mulçumanos é uma guerra cultural. No Brasil não é diferente. Você vê que o número de negros mortos no Brasil é muito grande. A polícia do Brasil extermina jovem negro. Então, a cara da cultura negra, hoje, é a cara dos assassinatos, como sempre foi. A cultura negra é a inimiga e estão tentando exterminá-la. Os negros são injustiçados, são mortos, sofrem crimes por uma questão cultural e racial e a polícia, no Brasil, está a favor da elite branca.

Você se espanta com esse cenário racista e homofóbico no Brasil?

A questão da homofobia não pode se juntar ao racismo. São coisas totalmente diferentes e não podem ser associadas porque você tira a força de uma em relação a outra.

Se pudesse estar frente a frente com um de seus personagens de Cidade de Deus, quem seria e o que diria?

Eu diria para o Zé Pequeno: continue fugindo dos policiais porque eles podem matar você.” – Paulo Lins

Mas compartilham de uma coisa em comum que é o preconceito.

É, mas são diferentes. Uma criança negra sofre racismo e a pior coisa que existe no mundo é o racismo contra uma criança. É muito triste e ela sofre muito. A homofobia não tem nada a ver com racismo. São coisas completamente diferentes. A homofobia é muito triste e não estou desmerecendo essa luta. Então assim, tem homofobia, tem racismo, mas a luta contra isso cresceu muito também.

Diante disso, você vislumbra alguma mudança no comportamento cultural do brasileiro?

Tudo vem de uma trajetória e de uma luta muito grande. A questão da mulher, do negro, dos homossexuais. É uma luta constante que vem de muitos anos. Por exemplo, eu sou bisneto de escravos. Então, a minha posição na sociedade hoje é diferente da sociedade da minha mãe, do meu avô, quando o racismo era muito mais violento. Mas já melhorou bastante. Muita gente entrou pra ir contra esses crimes, para esclarecer, para informar. A mulher, o negro e o homossexual são as maiores vítimas de agressão no Brasil. Porém, tem uma nova geração que está combatendo isso de forma muito efetiva. As redes sociais são uma coisa importantíssima nisso. Vai chegar um momento em que vamos conseguir viver com mais liberdade.

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(Foto: Mauricio Pokemon)

Recentemente, o cineasta Spike Lee protestou contra a ausência de artistas negros na premiação do Oscar deste ano. Em sua opinião, a nossa realidade é diferente?

Nada! É só você olhar e você vê. Está estampado que a gente sofre racismo. Isso se tornou mais marcante quando eu comecei a ter mais dinheiro e passei a frequentar lugares mais caros e vi que não tinha negros. Em todos os lugares em que as pessoas têm mais grana e mais status social, tem ausência de negro.

Como anda a literatura brasileira lá fora?

Vai bem, obrigado (risos). Tem um mercado muito grande e isso começou nos anos 1990. Antigamente era só Jorge Amado e Paulo Coelho, mas a partir dos anos 1990 muita gente começou a ser publicada no exterior. Por exemplo, Marcelino Freire foi lançado no mundo todo. Sou fã dele, é um grande escritor.

Se pudesse estar frente a frente com um de seus personagens, quem seria e o que diria?

Eu diria para o Zé Pequeno: continue fugindo dos policiais porque eles podem matar você.

(Publicada na edição #23, dezembro/janeiro de 2016)