“Eu vou cantar essa música e ao final quero que vocês me vaiem”. O pedido do artista no palco, segurando um violão, cabelo assanhado e all star vermelho, soaria estranho, não estivesse a plateia totalmente por dentro – era uma referência clara ao episódio de 1969 quando, ao defender a canção Gotham City, no IV Festival Internacional da Canção, uma parceria com o poeta Capinam, ele foi vaiado por um Maracanãzinho lotado que não entendeu se tratar de uma crítica ao momento político brasileiro. “Nossa, parece hoje”, diz Jards Macalé – e ele pode estar falando da vaia, ou do Brasil.

O rótulo da incompreensão sempre esteve, de algum modo, vinculado ao músico carioca, negro, da Tijuca, integrante de um grupo de artistas brasileiros que, apesar da qualidade e originalidade de suas composições, eram classificados como malditos na virada de 1960 para 1970. Macalé, Walter Franco, Jorge Mautner, Sérgio Sampaio, Tom Zé e Luiz Melodia levaram essa alcunha, muito mais pela incapacidade de se definir o novo do que pelo teor diabólico da expressão.

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Foto: Dulce Helfer

 

“Maldito é o Brasil! Como é agora”, diz quase gritando em conversa com a Revestrés, na piscina do hotel onde esteve hospedado. O cantor teve passagem breve por Teresina, onde realizou o show de encerramento do Festival de Teatro Lusófono, realizado pelo Grupo Harém e Navilouca Produções, no último mês de agosto.

Macalé é rosto pouco conhecido – mas ele está por trás de incontáveis músicas que viraram hino dos anos 70. Viveu de perto os maiores episódios contraculturais da história do país e é parceiro artístico de uma lista impressionante de grandes poetas – a turma marginal, antes incompreendida, hoje considerada magnífica. Compôs, com Wally Salomão, alguns dos maiores hits de Gal Costa, como “Vapor Barato” (gravada novamente pela banda O Rappa, em 1996), “Mal Secreto” e “Hotel das estrelas”.

A história conta que Caetano Veloso, exilado, mandou buscar Macalé no Brasil para produzir e gravar os arranjos de Transa, em Londres. Lançado em 1972, o disco é até hoje um dos maiores da música brasileira – e o toque de Macao, Tutti Moreno, Moacyr Albuquerque e Áureo de Sousa certamente contribuiu. Pena isso não ter sido registrado: por um erro do artista gráfico que fez a capa, a ficha técnica não saiu no disco.

Macalé musicou “Let’s play that”, um dos poemas mais famosos de Torquato Neto. “Ele chegou com a letra, eu fui lendo e fui fazendo. E ficou. Macalé se reconhece em uma fotografia publicada na Revestrés#5, ao lado do “anjo torto”. Folheia, admira-se, dobra a revista sobre a mesa e diz: “Vamos botar Torquato aqui para nos inspirar”.

 

Você, ao lado de Jorge Mautner, Tom , Wally Salomão e outros, faz parte de uma geração apelidada de “malditos”. Esse tempo ficou para trás? 

Ficou para trás. Mas o período foi bom. Porque naquele momento estava numa transição de linguagens, depois da semana de 22, semana moderna, o concretismo, o pós-concretismo, etc. Estava todo mundo tentando uma linguagem nova, na poesia, na música, teatro, cinema, todo mundo. E aí nessa leva, pessoas que apareceram como Sérgio Sampaio, Tom Zé, eu, Melodia, Jorge Mautner e mais alguns, o mercado, as gravadoras, não identificavam a linguagem direito. Em que nicho esse pessoal se encaixa? Aí inventaram esse negócio de maldito, como classificando o incompreendido. Eu fiquei feliz. Eu estava ao lado de gente sofisticadíssima. A gente estava no Brasil, maldito era o Brasil! Como é agora. A linguagem que estava imposta na época era marginal, era maldita. E tinha uma áura romântica em ser marginal. Passa o tempo, estamos em 1985, as gerações que sucederam aquela começaram a não entender o que era maldito e eu comecei a me sentir amaldiçoado. Ninguém entendia que tinha uma história, isso de maldito. Vá ao dicionário pra saber o verbete de maldito como é horroroso. Mas essa coisa já tá anulada, tanto que eu fiz um disco em 1999 chamado “O que faço é música”. Esse título eu peguei de Hélio Oiticica. Uma vez perguntaram a ele: “Ei, Hélio, o que é isso que você faz?” E ele respondeu: “o que faço é música”.   

Você se sente mais compreendido hoje? 

A receptividade hoje é muito melhor. Passaram-se anos e os ouvidos aprenderam várias coisas, de tanto bater, insistir. A gente conseguiu furar. Mas a caretice continua reinando. 

Teresina tem uma relação afetiva muito grande em relação a Torquato 

É, mas na época não tinha não… 

Como vocês se conheceram? 

Ele me deu a letra de “Let’s play that” para musicar. Eu sou da Tijuca, no Rio de Janeiro, mas morava em Ipanema, no bar 20, o último ponto onde o bonde fazia a curva. Eu morava ali num edifício e tinha um grande amigo chamado Jota Viana, poeta, músico, escritor, também piauiense. Uma figura extraordinária. E as mães de João Viana e de Torquato Neto eram amigas, do Piauí. O Torquato foi passar uma temporada no Rio e ficou na casa do Jota, e foi ele que nos apresentou. E nós nos tornamos imediatamente amigos. Torquato era muito aberto, quando ele estava disposto. Tínhamos uns 22, 23 anos. Ele já era jornalista, um puta escritor. 

“78 rotações”, parceria de você e Capinam, é uma música que fala, sobretudo, de ter calma. Como você observa esses tempos da pressa? Do novo, da informação, onde tudo fica velho muito rápido 

Eu acho que se perde muita coisa no caminho. Pressa? Devagar também é pressa, sabia? Diz o ditado popular. De-va-gar também é pressa (fala quase parando). Se você anda sem pressa, percebendo o seu entorno, percebendo que a vida existe, que o mundo existe, que tem coisas absurdas acontecendo – mas tem também coisas maravilhosas. Se você está ligado no mundo lá fora e consegue selecionar as coisas legais que podem lhe alimentar, você está na frente de todo mundo. E quem está com pressa não percebe nada. Quando vai perceber, morreu.  

Qual é o verdadeiro significado de “Vapor Barato”?  

Vapor barato é o seguinte, tem total duplo sentido: “vapor” significa o vapor de cachoeira, o vapor do rio, que leva as pessoas. E também o vapor da boca de fumo. O “barato” é de barato, grana, dinheiro, e também o “barato” do vapor. É uma música que fala de partir, de estar sufocado – o país estava sufocante naquele momento. “Vou descendo por todas as ruas e vou tomar aquele velho navio…” era muita gente querendo sair, sentindo isso. Agora tá acontecendo da mesma forma, de uma forma diferente. O “Vapor barato” fez um grande sucesso quando o Wally botou pra Gal cantar no Fatal, que ele dirigiu, em 68. Aí o vapor foi e, quando estava se acomodando, o Walter Sales fez o “Terra Estrangeira” sobre os imigrantes, e, aí, lá vai o “Vapor Barato” original com a Gal, no final do filme. Aí volta todo o vapor e, quando ele tá quase sumindo… o Rappa grava o vapor de novo. Aí estoura de vez.  

Na época vocês imaginavam que uma música tida como hino hippie ficaria por tanto tempo atual? 

Quem imaginaria uma coisa dessas? A gente não sabia se ia viver no dia seguinte. 

E o que você acha que faz uma música virar um clássico?  

Eu não sei. Não tem fórmula, nem receita. Ela pode ser boa para alguns e ruim para outros. É um eterno mistério. 

Todo mundo quer ser artista, mas poucos estão dispostos a viver da arte”, disse um famoso pianista, certa vez. Você concorda? O que você acha do ser artista? 

A arte é muito mais complexa do que qualquer outra profissão. Muito mais. E você trabalha 48h por dia. Não tem hora, nem dia, manhã, tarde, não tem férias. Criação é um ato contínuo. Então você trabalha muito mais do que qualquer outra pessoa comum. Comum é acordar de manhã, se preparar, tomar café, ir trabalhar, etc. Almoça, volta, encerra. Com a gente não tem disso não. Tem hora que você tá num lugar longe, com fome, mas você tá produzindo. Tá em estúdio, entra o dia pela noite, atravessa horas lá dentro, quando você sai são 3 da manhã e você perdeu toda a noção de tempo. Não sabe se é quarta, se é quinta, se é noite ou dia, o que aconteceu. É desse jeito.  

Você acha que o compositor é pouco reconhecido, ao contrário do intérprete, ou isso tem a ver com o seu estilo mais resguardado? 

É, demais. Muita gente participa de uma composição, não se pode cortar a base. Mas eu também não quero nada, sou preguiçoso pra caralho. Quando dizem na rádio “Vapor Barato, de Gal Costa”, eu penso: ela devia pagar a gente pra aparecer na nossa música.   

(Publicada na Revestrés#32 – Agosto/Setembro 2017)