Uma dúzia de pessoas divide a atenção entre o copo de cerveja e um filme projetado de maneira improvisada na fachada do Cine Rex. A cena acontece todas as sextas-feiras, a partir das 20h, e faz parte do movimento Rexzona ou Cine Rex Terehell, iniciativa de alguns jovens que lutam pela revitalização do que já foi o segundo maior cinema de rua do Brasil.

Nos idos anos 50, a noite no complexo cultural da Praça Pedro II era movimentada. Lá, os jovens e amantes da sétima arte faziam seu passeio dominical enquanto esperavam mais uma sessão de cinema. Sim, assistir a um bom filme era o melhor programa para muitos teresinenses que puderam viver os tempos áureos do Cine Rex, atualmente apenas uma estrutura física mal conservada.

Agora, o espaço para cinema em Teresina é outro. Da mesma forma, o hábito de apreciar bons filmes também mudou. Com as salas de exibição inseridas dentro dos shoppings e envoltas pelo ambiente de consumo característico desse local, ir ao cinema atualmente exige mais tempo, disposição e dinheiro.

Na opinião do escritor e cineasta Monteiro Junior, perde-se muito com essa restrição, principalmente no que se refere ao acesso. “Sabe aquela coisa de passar em frente ao cinema numa tarde quente, ter um trocado no bolso e simplesmente resolver entrar? A espontaneidade se perde, pois nos shoppings as pessoas se obrigam a ir bem arrumadas e com um propósito definido”, afirma Monteiro.

De acordo com o cineasta Douglas Machado a falta de espaços para exibição é reflexo da desvalorização do teresinense em relação à sétima arte. “O público daqui, na essência, não gosta de cinema. Talvez frequentem para preencher um período vazio de suas vidas”, acredita Machado. “O fechamento do Cine Rex é só um espelho da nossa sociedade”.

Por outro lado, uma recente enquete realizada pelo Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE) com 25.870 estudantes revelou um dado que vai de encontro às percepções dos cineastas piauienses. Ao responderem a pergunta “Qual a sua preferência de lazer aos finais de semana?” 29% dos jovens disseram que é ir ao cinema, ganhando de atividades como esporte, churrasco com os amigos e até baladas.

O fato é que a transferência das salas de cinema para dentro dos shoppings não é uma realidade apenas local, e influencia na elitização do seu público. Assistir a um lançamento hoje em Teresina, sem preço promocional e com direito a pipoca e estacionamento de veículo, sai por quase 30 reais. Se o filme escolhido for em 3D, esse valor praticamente dobra. Evidentemente, os preços dificultam o acesso de classes menos favorecidas. Há, é claro, promoções de meia entrada para estudantes e para sessões vespertinas em certos dias da semana, mas, para o cineasta Monteiro Junior, ir ao cinema virou apenas mais uma atividade comercial. “Assistir a um filme deixou de ser programa cultural para se tornar parte de ir ao shopping”, afirma Monteiro Junior. “O Piauí precisa com urgência de uma revolu-ção cultural, sob o risco de estagnar de vez e desapare-cer perante a própria inércia”, sentencia o cineasta.

Enquanto os cinemas de rua vão fechando suas portas e as salas de exibição vinculadas a complexos comerciais – as Multiplex, com alto nível de conforto e tecnologia avançada – vão se expandindo, o público vai protestando através de abaixo-assinado e das redes sociais, pela volta de um cinema mais popular e acessível. E os projetos de cinemas itinerantes e gratuitos, com pouca divulgação e quase sem público, vão sendo reconhecidos nacionalmente, na tentativa de atrair telespectadores e descentralizar o cinema. Quando o assunto é cultura, nem tudo precisa ter efeito especial.

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A KOMBI DO CINEMA

Gabriel tem 7 anos, mora no bairro São Joaquim e nunca tinha visto filme passando numa tela daquele tamanho. Foi correndo tomar banho e trouxe sua própria cadeira, para não perder a sessão que começava, com o filme “Kiriku e a feiticeira”. Ele e muitas outras crianças da comunidade localizada na zona Norte da capital eram só empolgação com a noite do cinema gratuito na rua em que moram.

O episódio aconteceu no último mês de março, em uma das saídas da Kombi do Cine Periferia, projeto da ONG MP3 – Movimento Pela Paz na Periferia – que leva exibição de filmes para as comunidades periféricas de Teresina. O projeto foi eleito este ano uma das três melhores iniciativas sociais no Brasil pelo Prêmio Anu, da Central Única das Favelas (Cufa). O prêmio consagra ações desenvolvidas em favelas e comunidades carentes de todo o país, através de votação popular e da crítica especializada.

Nos primeiros anos de projeto, o grupo alugava uma van e equipamentos de projeção com ajuda de católicos, comunidades espíritas e quem mais se dispusesse.  Até que, com edital preparado e escrito, o projeto conseguiu uma verba estadual através das escassas políticas voltadas para a cultura. Foi aí que veio a Kombi plotada, que hoje é a marca registrada da ação.

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Leandro Souza, um dos coordenadores do MP3, explica que a atividade, além de divulgar os projetos do grupo e ser uma opção de lazer gratuito, tem também a importante função de levar a cultura para pessoas com pouco ou quase nenhum acesso. “Os jovens dessas regiões muitas vezes não circulam nem no próprio bairro, ou não vão ao centro da cidade, pois em geral são envolvidos com gangues, uma realidade na região onde moram”, afirma o coordenador.  Unindo a comunidade, a Kombi ainda revitaliza e tem a intenção de pacificar praças marginalizadas nesses bairros. “O cinema funciona como uma bandeira da paz por onde ele passa.”, acredita Leandro.

As sessões, montadas sempre ao ar livre, acontecem todos os dias da semana, em bairros e comunidades diferentes. A Kombi chega, anuncia em alto-falantes a exibição e em pouco tempo o público começa a aparecer e acomodar-se sem cerimônia. “Nas comunidades onde já somos conhecidos sempre lota. Tem gente no chão, em todo lugar, pra assistir ao filme”, conta Jailton Carlos, à frente do movimento.

O Cine procura exibir filmes voltados para a realidade da periferia – geralmente são longas brasileiros ou histórias de superação pessoal. “Mas também não abrimos mão dos filmes da moda. Avatar, por exemplo, foi muito exibido. É importante pra comunidade se sentir incluída”, comenta Leandro. “A pirataria dá muito acesso, mas é bem diferente da socialização que uma sala de cinema permite”, aposta o coordenador.

 

SESSÃO DAS DOZE

Quando o assunto é cinema, José Elias Area Leão tem histórias de sobra. Cinéfilo desde a juventude, já foi dono de uma locadora de vídeos e organizador de uma sala de cinema que reunia amigos para ver filmes a preços populares nos anos 80. Ex-secretário de cultura, ele é hoje braço direito de Josy Brito, diretora da Casa da Cultura de Teresina, na elaboração da programação do Clube do Vídeo, que acontece na casa.

O Clube tem a proposta de levar os clássicos do cinema à população e é mantido pela Fundação Cultural Monsenhor Chaves. Aberto ao público, o espaço costuma receber poucos frequentadores. “Há semanas que somente duas ou três pessoas aparecem. É triste, porque temos toda a estrutura, e ainda o cuidado de elaborar a programação, mas é muito difícil – é questão de formação de público mesmo”, afirma Josy.

A programação é cuidadosamente escolhida por ela e Zé Elias, que procuram, através de filmes, homenagear grandes nomes e fases do cinema. “Esse ano é o centenário do Mazzaropi, então vamos procurar exibir alguns filmes dele”, diz Elias. Na semana  do  dia  da  mulher,  em  março,  foi  “Mulheres à beira de um ataque de nervos” de Almodóvar, que preencheu a sessão. Bons títulos nunca  faltam,  mesmo  que  cults  ou  pouco populares.

Também não será por falta de tempo que os teresinenses vão deixar de ver um bom filme. Pelo menos no que depender do projeto Cinema Para Todos, da Fundac (Fundação Cultural do Piauí) as portas da Sala Torquato Neto, no Clube dos Diários continuarão abertas todos os dias, às 12h15. Este ano, o projeto retorna com programação nova a partir do mês de maio.

O objetivo é proporcionar a quem trabalha no centro da cidade um ambiente para relaxar e aproveitar para ver um filme no intervalo do almoço. “O projeto foi criado pensando nos comerciários que estão pelo centro e depois do almoço não possuem um local para passar o tempo até a volta ao trabalho”, afirma Antoniel Ribeiro, coordenador do complexo Cultural Praça Pedro II, onde fica a sala.

A entrada é franca e a sala Torquato Neto tem a capacidade de receber 140 pessoas em ambiente climatizado, mas nunca chegou a ter lotação  máxima.  Entretanto,  a  frequência  de público é considerável e prova que os espaços existem e estão sendo ocupados – mesmo que o interesse seja apenas tirar o bom e velho cochilo depois do almoço.

CINE REX: UM GIGANTE EM AGONIA

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O Cine Rex foi inaugurado em 1939 e passou por uma reforma em 1973, na qual foram preservadas suas características arquitetônicas no estilo Art Déco, predominante da década de 20. Dentro do cinema estavam disponíveis 800 lugares na sala de exibição principal e mais 450 cadeiras na segunda sala. Por conta dessa capacidade física o Rex só perdia, em tamanho, para um cinema de rua localizado em Belém do Pará e que atualmente funciona como centro cultural.

Na tentativa de reativar o gigante do centro, dezenas de jovens se reúnem na Rexzona para exibir filmes – sempre produções locais – enquanto o movimento cresce nas redes sociais, tentando colher assinaturas para um abaixo-assinado pela volta do Rex. Por enquanto, cerca de 200 pessoas se colocaram favoráveis ao retorno do último cinema de rua a fechar as portas em Teresina. Segundo Mariana Leal, integrante do movimento, o objetivo é entrar com uma petição pública para evitar a descaracterização daquele espaço. “O fechamento do Rex tem como maiores prejuízos a perda da memória e da identidade cultural”, afirma a jovem.

Somente a fachada do cinema é tombada pelo patrimônio histórico cultural. Isso significa que são permitidas mudanças na sua estrutura física interna, enquanto as características externas devem ser preservadas. Mas basta olhar a situação em que se encontra o prédio para perceber que, na prática, não é exatamente isso que acontece. “O Cine Rex está acabado por dentro e, por fora, começa a perder toda a sua beleza”, lamenta Mariana Leal.

Por ser tão jovem, a moça luta pelo retorno de um cinema que ela sequer conheceu em pleno funcionamento. Já o enfermeiro Antonio Pereira Rocha – o Toinho – 53 anos, ainda tem bem guardadas as belas formas do Cine Rex nas décadas de 80 e 90, assim como as aventuras que viveu entre uma sessão e outra. “Tinha muita gente que frequentava o cinema naquela época. Para mim, todos os domingos esse já era um programa certo”, conta Toinho.

Agora, essas e outras aventuras que tiveram o Cine Rex como cenário principal ficam na memória dos que viveram o prazer de frequentá-lo, ou povoam o imaginário de jovens como Mariana Leal e todos os outros que formam o movimento Rexzona. Revestrés tentou contato com os atuais locatários do prédio do Rex, mas até o fechamento desta edição não obteve resposta.  Como será utilizado aquele espaço, como ele será preservado ou mesmo se voltará a ser um cinema de rua, ainda são questionamentos sem resposta.

(Reportagem publicada na Revestrés#02 – Maio/Junho 2012)