Balé Teatro Guaíra - Cinderela - Fernanda Castro

Balé Teatro Guaíra – Cinderela – Fernanda Castro

Carlos Drummond de Andrade já dizia: “A dança? Não é movimento / súbito gesto musical (…) /Um estar entre céu e chão / novo domínio conquistado / onde busque nossa paixão / libertar-se por todo lado…”. E de liberdade essa gente entende: circulam o mundo com obras premiadas, desbravam o Brasil e dançam mais que coreografias – são artistas da alma.

Não é de hoje que grandes companhias de dança do Brasil enfrentam grilhões que acorrentam seus tornozelos. Demissões, falta de patrocínio, ameaças de fechamento, problemas administrativos e a necessidade de adesão a novos formatos e alternativas de financiamentos arrastam décadas de história para o colapso. “Não é um momento só de crise financeira, é um momento de crise do pensamento”, diz Janaína Lobo, diretora artística do Balé da Cidade de Teresina.

Goiânia, Curitiba, Belo Horizonte, São Paulo, Teresina. De norte a sul, companhias resistem para continuar com a manutenção de suas atividades. Tiram de letra quando o assunto é criatividade, mas esbarram na redução de verba para financiamento cultural, atraso de repasses, alteração de calendários e desvalorização profissional.

Dançando conforme a música

No último mês de setembro, após 28 anos de existência, a Quasar Companhia de Dança anunciou a paralisação de suas atividades permanentes. Com sede em Goiânia e patrocinada nos últimos três anos pelo edital Petrobras Cultural, o subsídio encerrou e os bailarinos passaram a cumprir aviso prévio. “Somos reféns das políticas públicas de cultura hoje no Brasil. Os programas não visam a continuidade, atrasam os repasses de verba, não obedecem aos calendários e agravam a recessão do país. Quando se chega ao nível profissional, as demandas são maiores e precisamos de recursos mais certos”, diz a diretora da companhia, Vera Bicalho.

Somos reféns das políticas públicas de cultura hoje no Brasil – Vera Bicalho, Diretora da Quasar Companhia de Dança

A notícia gerou solidariedade em colegas da área e grande comoção nas sessões de espetáculos e redes sociais, gerando as campanhas pela continuidade do grupo #FicaQuasar e Amigos da Quasar. Prestes a fechar as portas, o rumo mudou quando foi estabelecida parceria com o Governo do Estado de Goiás.  Por meio de uma Organização Social (OS) foi criada a Quasar Companhia de Dança do Estado de Goiás, que passa a funcionar nesses moldes a partir de 2017. “Não vejo como uma saída comum e fácil, muito pelo contrário. Porém, são instâncias como estas que os grupos devem procurar para ajudá-los”, considera Bicalho.

Ganhadora do Prêmio Klauss Vianna em 2011, 2013 e 2014, a companhia foi contemplada com prêmios de melhor coreógrafo para Henrique Rodovalho e tem em seu repertório espetáculos como “Só tinha de ser com você”, eleito, em 2010, um dos 10 mais importantes espetáculos de dança da década pela – relançada em 2016 – Revista Bravo!. Apesar da atual circunstância, a companhia continua esgotando ingressos de espetáculos e estreou este ano o trabalho “a distância entre dois”. “Além da parceria com o Estado, estamos em estudo para promover outras formas de funcionamento. Isso nos faz repensar a nossa atual estrutura e buscar mais de uma forma de sobrevivência. Temos que acreditar, encarar e, principalmente, fazer com qualidade e criatividade”, acredita Vera Bicalho.

Criatividade tem sido mais que importante: é questão de sobrevivência. “Temos que nos reinventar se não quisermos ser engolidos pela crise. É preciso criatividade e estratégias eficientes para que a companhia siga em frente” diz Cintia Napoli, atual diretora do Balé Teatro Guaíra, companhia criada em 1969 na cidade de Curitiba.

A situação no Paraná inspira insegurança e atenção. Em julho deste ano, na Noite de Gala do Festival de Dança de Joinville, a companhia fez um pronunciamento emocionante para um público estimado em 6 mil pessoas. Os 81 cargos comissionados dos funcionários do Balé e da Orquestra Sinfônica do Teatro Guaíra criados por lei em 2003 haviam sido julgados inconstitucionais pelo Tribunal de Justiça do Paraná. Em 2012, uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) questionou esta lei porque não há previsão constitucional para o uso artístico de cargos comissionados. “Porém, até o momento os bailarinos e músicos ainda não foram exonerados”, esclarece a diretora.

Para garantir a continuidade das atividades e evitar a interrupção das agendas, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) pediu o adiamento da decisão até a implementação do SSA – Serviço Social Autônomo, uma forma de contratação em regime de CLT proposto pelo governo. “O recurso expedido pela PGE pede que os cargos sejam extintos só em março de 2017. Tal pedido foi aceito porém, sem prazo definido, tornando incerto o dia-a-dia dos corpos artísticos”, diz Cinta Napoli que torce ainda para que o prazo seja suficiente até a implementação do SSA e a dotação orçamentária seja ideal para manter o bom funcionamento e qualidade do Balé Teatro Guaíra.

“Temos investido em produções de grande, médio e pequeno porte, mantendo o nível dos bailarinos. Esta gestão criativa tem sido uma batalha diária, mas com bons resultados”, diz. Com mais projetos voltados para formação de plateia, democratização e acessibilidade, conversas sobre dança e encontros entre companhias públicas nos últimos anos, o Balé Teatro Guaíra também enfrenta as exigências de um momento que pede por mudanças de todas as ordens. “Temos que entender esta condição. Lamentar não é nossa escolha, temos que propor mudanças”, considera Napoli.

“Lamentar não é nossa escolha, temos que propor mudanças” – Cintia Napoli, diretora do Balé Teatro Guaíra

Já entre as ladeiras de Belo Horizonte, o Grupo Corpo, companhia com 41 anos de existência, precisou diversificar parcerias para o financiamento de suas atividades. Patrocinada pela Petrobras desde 2000, a companhia teve seus recursos repassados pela estatal reduzidos. O último edital da Petrobras Cultural publicado em 2014 destinou R$ 10 milhões para as seleções públicas, quando o edital anterior, do ano de 2012, do mesmo programa, destinou quase seis vezes mais: R$ 67 milhões.

“Estamos vivendo uma situação econômica difícil. Então a gente resolveu abrir o leque de possibilidades para a sustentabilidade da companhia”, diz Cláudia Ribeiro, diretora de programação do Grupo Corpo. Para dar uma incrementada no orçamento e estreitar a relação com o público, a companhia lançou a campanha Amigos do Corpo, em que pessoas físicas podem destinar até 6% do imposto devido a pagar ou a restituir. A simulação está disponível no site amigosdocorpo.com.br. “De uma forma bem simplista, é como se a pessoa fizesse um empréstimo”, explica Cláudia.

Em contrapartida, a companhia promove ensaios-abertos e visitas à sede do grupo para os apoiadores. “A gente vislumbrou ainda a possibilidade de conhecermos nosso público mais de perto. Existe uma mudança no modelo de financiamento da cultura no país e, talvez, uma nova forma de encará-la é trazer a pessoa física para mais perto. Temos que tratar de descobrir novos jeitos de sobreviver nesse mundo que está mudando. Vamos dançando conforme a música toca”, compara Cláudia Ribeiro.

Existe amor em SP

Sob o céu cinza de São Paulo existe um feixe de cor. Com mais de 40 anos de estrada, companhias de dança encaram dificuldades para continuar com a manutenção de suas atividades, mas persistem com o fôlego de iniciantes. No ano de 2015, as diretoras da Cisne Negro Companhia de Dança, Hulda Bittencourt e Dany Bittencourt comentaram na imprensa sobre a falta de patrocínio que a companhia vinha sofrendo. Aos 39 anos, assistida por um público superior a 2,5 milhões de pessoas e com apresentações na Europa, Estados Unidos, América Latina, África e China, a companhia resiste com sua folha de pagamento e custos de produção comprometidos.

“O momento é difícil para todos, principalmente na cultura, mas estamos sobrevivendo e acreditando em um futuro melhor, reinventando e adaptando projetos antigos para a situação atual, fazendo versões reduzidas e viáveis para que se realizem”, diz a diretora Dany Bittencourt. Para ela, é necessário se adequar ao momento e procurar soluções criativas para manterem-se atuantes. “Não se deve deixar de acreditar e trabalhar arduamente para que a história da dança continue sendo escrita neste país”, diz otimista.

No Ballet Stagium, a situação não é diferente. Aos 45 anos e sob direção de Márika Gidali e Décio Otero, a companhia sofre com a falta de subsídio do governo. Helena Katz para o Estado de São Paulo no último mês de setembro chamou esta de “a pior crise do Ballet Stagium”. Mas, para quem é acostumado a desbravar o país isto não iria atar seus pés. A companhia lançou temporada pela continuidade do balé, organizou petição pública pelo reconhecimento do Ballet Stagium como Patrimônio Cultural Brasileiro e criou um fundo de recuperação para arrecadar dinheiro com o intuito de pagar o salário dos bailarinos.

“Estão nos colocando em uma vala comum como se não tivéssemos feito nada, ignorando o que somos e a nossa contribuição à cultura brasileira. Estão tentando nos apagar da história que ajudamos a construir”, disse Márika Gidali à Helena Katz na oportunidade. “Nossos gestores fingem desconhecer o que fizemos e continuamos a fazer”, acrescenta Décio Otero.

Primeira companhia nacional a utilizar trilhas sonoras da MPB, desde sua fundação em 1971, o Ballet Stagium atravessou a censura da ditadura militar e percorreu o Brasil dançando em palcos, tribos, barcos e penitenciárias. Dançou no Xingu, no Pantanal, na Serra Pelada, na Favela da Rocinha e em palco flutuante no lago do Parque do Ibirapuera. “O grupo se transformaria numa escola ‘on the road’”, disse Cássia Navas no programa de sala sobre a temporada em comemoração aos 45 anos da companhia.

Teresina dentro do mapa

No gráfico da crise, Teresina não escapa. Aos 23 anos, o Balé da Cidade de Teresina enfrenta a redução do seu quadro de funcionários e o sucateamento de sua estrutura. A companhia municipal já teve cerca de 20 bailarinos, mas hoje conta com apenas oito. “Insistimos em dizer que precisamos de mais seis bailarinos, produtor, ensaiador e dois professores. Há mais de dois anos tentamos reorganizar essa estrutura e não conseguimos”, diz Francisca Silva, diretora da companhia. Entidade da Prefeitura de Teresina responsável pela contratação de funcionários, a Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves remanejou funcionários para outras instituições sob sua gestão, causando desfalque na equipe.

Redução de bailarinos, corte do plano de saúde, ausência de fisioterapeutas. “Acham que é luxo” – Francisca Silva, diretora do Balé da Cidade de Teresina.

“Parece até que somos um problema. A gente até poderia se virar se não fôssemos uma política pública municipal”, diz Janaína Lobo, diretora artística do Balé. “Cada vez mais a gente deixa de atender a cidade e ficamos tentando arrumar maneiras criativas de funcionar”, diz ela sobre iniciativas autônomas do grupo como o projeto Faísca, em que o elenco pode trazer inquietações para transformá-las em processos ou trabalhos; 6ª às 6, que são apresentações em uma sexta-feira por mês com interação do público e apresentações que contam com ex-bailarinos para remontar antigos espetáculos do repertório ou jovens bailarinos para novos trabalhos com apresentação única. “Também é um jeito de desmistificar aquele lugar de companhia e tirar essa sacralização da nossa profissão”.

Além da redução de bailarinos e profissionais da equipe, as reivindicações passam pelo corte do plano de saúde e ausência de fisioterapeutas e psicólogos que a companhia já chegou a ter. “A gente coloca uma série de critérios e pensam que queremos mero status. Acham que é luxo”, diz Francisca Silva. “Não entendem que faz parte do fazer”, concorda Janaína Lobo.

Buscando novas maneiras de continuar com suas atividades, a companhia tem reduzido os custos de produção e os membros vêm se revezando entre dar aulas, coreografar trabalhos e divulgar espetáculos em cartaz. “Por um lado, é um ganho, porque se a gente estivesse no ideal não estaríamos pensando sobre isso”, conta Janaína. No entanto, a nova dinâmica torna precário o funcionamento da única companhia profissional da cidade, premiada em diversos festivais Brasil afora. “É menos sobre dinheiro e mais sobre sensibilidade”, conclui Janaína Lobo.

Também atividade da Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves, a 20ª edição do Festival de Dança de Teresina estava prevista para agosto de 2016. O festival reunia anualmente milhares de inscritos entre grupos e artistas de Teresina, interior do Piauí e outros estados do Brasil em apresentações de diversos estilos durante quatro dias de evento. Após adiamento sem nenhum comunicado oficial, o festival acabou não acontecendo em 2016.

Procurado, o presidente da Fundação Municipal de Cultura Monsenhor Chaves, Paulo Murilo, recusou conceder entrevista. Ele tomou posse em abril deste ano após afastamento do então presidente da instituição, Lázaro Ramos, para se candidatar ao cargo de vereador.

Talvez não seja tão difícil compreender o entrave destas políticas públicas. Vamos às contas: para 2016, estava previsto mais de 2 milhões para promoção de arte e cultura, entre festivais, concursos literários e programações culturais; mais de 1 milhão para a Lei Municipal de Incentivo a Cultura A. Tito Filho; mais de 2 milhões para preservação do patrimônio histórico de Teresina e adequação de prédio para espaços culturais e mais de 12 milhões para a administração da FMCMC, totalizando aproximadamente 18 milhões. Esta fatia representa apenas 0,6% do percentual de todo o município destinado anualmente para a cultura.

“Não é um momento só de crise financeira, é um momento de crise do pensamento” – Janaína Lobo, diretora artística do Balé da Cidade de Teresina

Além dos gastos com administração somarem 12 milhões – o dobro do montante realmente destinado a promoção de arte e cultura, a Lei A.Tito Filho acumula dívidas referente aos editais de 2008 e 2009 e os projetos aprovados no edital de 2012 só devem receber repasse após uma nova reformulação prevista para a lei.

Crise para quem?

De um lado, companhias, bailarinos, diretores. Do outro, gestores. No meio do fogo cruzado e, muitas vezes subestimadas, as plateias. “Persiste a pergunta que sempre faço: quem está interessado em ver dança? Sabemos quem fez e segue fazendo, mas a questão das crises (no plural) não afeta somente os artistas, afeta as plateias”, diz a doutora em dança e semiótica, pós-doutora em artes e especialista em gestão e políticas públicas Cássia Navas. “A dança sempre esteve em crise”, afirma.

Soma-se aos recorrentes questionamentos cortes econômicos, mudança de paradigmas políticos e prioridade de financiamentos. “Uma espécie de crise também vem se instalando pelo apoio a certas formas da linguagem em detrimento de outras. Temos também uma crise de identidades da dança, que deve ser encarada de maneira multidimensional”, avalia a pesquisadora. “Não se pode sobreviver somente com um tipo de financiamento”, alerta. Na prática, a realidade está cada vez mais complexa. “Estamos numa crise aguda, questões terão que ser repensadas”.

O contexto alcança ainda políticas públicas deficientes em formação artística e programas de incentivo à memória e documentação ignoradas, comprometendo a qualificação de professores e o acompanhamento de criadores. “Os resultados disso são difíceis de serem aferidos agora”.

(Publicada na Revestrés#28 – dezembro 2016/janeiro 2017)