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(Fotos: Maurício Pokemon)

(Participaram dessa entrevista: Wellington Soares, Samária Andrade, André Gonçalves e  Maurício Pokemon. Texto e edição: Samária Andrade. Fotografias: Maurício Pokemon e arquivo pessoal)

O sol de B-R-O-BRÓ cintilava na piscina. Percorremos o bonito jardim do condomínio e seguimos até o apartamento onde Isis Baião nos recebe, em Teresina, logo oferecendo mate gelado e avisando que tem mais ventiladores em casa. Se estivéssemos em sua peça Clube do Leque poderíamos concordar com o enredo: “Na pacata cidade de ‘Maria Mole’, o calor é infernal!” – diz a sinopse.

Isis Maria Pereira de Azevedo Baião nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, e viveu no Rio de Janeiro por 48 anos. Formou-se em Jornalismo pela PUC/Rio, trabalhou em grandes veículos da imprensa nacional, como na revista O Cruzeiro, e consagrou-se como dramaturga de teatro. Tornou-se figura atuante na cena cultural carioca durante décadas. Antes disso, filha de mãe piauiense e pai mineiro, viveu infância e início da adolescência em Teresina, onde boa parte da família mora.

Na capital do Piauí, Isis era como peixe fora d´água. “Desde pequena eu sabia que tinha de sair daqui”. Corriam os anos de 1960. A adolescente estudava no Colégio das Irmãs e a família tinha vida financeira confortável. Ela poderia ter se casado e organizado festas grã-finas, como descreve na tragicomédia Clube do Leque. A peça foi escrita no final dos anos 70 quando Isis, já morando no Rio de Janeiro, passava férias em Teresina e constatava o seu estranhamento com o mundo a sua volta. Não entrou no Clube. Voltou ao Rio e usou o que via como inspiração para escrever. Clube do Leque recebeu o Prêmio Nacional SESI de Teatro em 1995. “Eu escrevi essa peça ouvindo os sons daqui. Minha mãe era presidente da Liga das Senhoras Católicas. Ela me disse: ‘minha filha, você não tá me retratando aí?!’. E eu: ‘não, mãe, nunca”. Isis continua: “Na Liga, elas realmente faziam filantropia, enquanto o Clube do Leque é uma sátira. Mas enfim, eu fiz algumas personagens parecidas, sim” (risos). Clube do Leque está publicada no livro Teatro (in)Completo, de 2003, onde a dedicatória diz: “À memória de minha querida tia Arabela, que foi íntima das lequistas”.

Isis pensou em fazer medicina, como o pai, mas desde cedo queria mesmo era trabalhar com teatro. Pelo reembolso postal, comprava livros sobre o tema. A ideia assustava a família. “Então, como eu queria que me deixassem estudar no Rio, optei pelo Jornalismo, atendendo a um outro amor: a escrita”. Conta que nisso teve influência do pai, hábil com as palavras. Em 1970, formada, ganhou de presente dos pais uma viagem à Europa. Passou quatro meses em Londres e como já era repórter de O Cruzeiro, enviava de lá matérias para a revista. “Londres era fascinante e mexeu com a minha cabeça”, conta.

A jornalista Isis Baião entrevista Leila Diniz

Terminado o período londrino, a jovem jornalista volta ao Rio de Janeiro. Seu amigo Sérgio Britto, ator, lhe fala de um Laboratório de Teatro para jovens atores. Ela vai conferir como jornalista, mas logo se junta a turma de candidatos a artistas. “Alguns dos meus colegas tornaram-se famosos”. E cita: Regina Casé, Hamilton Vaz Pereira, Patrícia Travassos, Luiz Fernando Guimarães e toda a turma do Asdrúbal Trouxe o Trombone (grupo de teatro que revelou jovens talentos e marcou a dramaturgia brasileira, em especial a comédia).

Após a experiência, Isis conclui que ser atriz não era bem o que ela queria fazer no teatro. Mas o que seria então? “Foi Ângela Leal (atriz) quem matou a charada, perguntando-me: por que você não escreve para teatro? Como que eu nunca tinha pensado naquilo! Comecei e nunca mais parei”.

A crítica aponta que o estilo de Isis é o humor satírico. Ela faz críticas à sociedade brasileira, com textos inteligentes e enxutos, usando a comédia. “Mas não é uma comédia confortável. Ela faz rir com humor cruel e leva à reflexão crítica”, disse Ana Maria Taborda, diretora e crítica de teatro.

Há menos de um ano de volta a Teresina, Isis tenta encontrar afinidades. Frequenta os programas culturais – que diz serem a sua praia – onde poucos a reconhecem. Não faz disso uma reclamação: “O ator é que costuma ser reconhecido, não o autor”. Suas queixas ficam para o sol implacável, que entra pelas janelas e desbota fotografias na parede. Em molduras, cartazes de peças e registros de premiações, como o “Onassis International Cultural Competitions”, que recebeu em Athenas, Grécia, em 1997. Com a peça Casa de Penhores, traduzida para o francês como Mont-de-Piété, Isis foi um dos sete escritores premiados àquele ano. Participaram do concurso 1.470 autores de 76 países.

No pequeno apartamento, livros seguram portas, prevenindo as ventanias que vez ou outra varrem Teresina essa época do ano. Entre as lembranças da vida de repórter e entrevistadora, a fotografia com Leila Diniz. Mas ela conta que a entrevista mais marcante foi mesmo a primeira que fez na vida, “uma prova de fogo”. Na época havia uma espécie de trote com os “focas” (jornalistas em início de carreira), que eram pautados para os trabalhos mais difíceis. Isis foi escalada para entrevistar o dramaturgo Nelson Rodrigues, famoso por sua impaciência com jovens repórteres. “Fiquei em pânico, mas segurei a onda. A entrevista saiu na primeira página do caderno de cultura de O Jornal” (O Jornal pertenceu a Assis Chateaubriand e teve circulação de 60 mil exemplares por dia).

Isis convida a sentar na sala e aponta o nosso gravador: “Às vezes o equipamento pode inibir, especialmente quem já foi jornalista. Eu entrevistei muito!”. “Então já sabe as artimanhas, né?”, digo. Isis, vira-se para Maurício: “E também já fui fotógrafa. Eu sei o que é isso” (risos).

(Em Teresina) Me parece, quem tá produzindo ou consumindo cultura são as pessoas mais simples não as pessoas com grana.

Samária – Você viveu por anos a cena cultural carioca. Há menos de um ano no Piauí, consegue avaliar o panorama cultural de Teresina?

Isis Baião – Eu fico constrangida de fazer uma avaliação porque são cidades muito diferentes e eu estou em Teresina há pouco tempo. Mas posso falar de impressões. Tenho ido em eventos culturais e me parece que as pessoas da zona leste pouco se interessam por cultura. E a zona leste é a área que concentra as pessoas de maior poder aquisitivo em Teresina. Então, parece correto supor que as pessoas de classe média-alta na capital do Piauí não se interessam por cultura. No Rio, quem mais frequenta eventos culturais são os moradores da zona sul, que além de concentrar pessoas de maior poder aquisitivo, congrega também artistas e intelectuais. Em Teresina há como uma separação. E, me parece, quem tá produzindo ou consumindo cultura são as pessoas mais simples e não as pessoas com grana.

André – Partindo dessa impressão, se em Teresina há um distanciamento entre quem produz e quem pode consumir cultura, isso interfere na produção das artes?

IB – Sim, e em vários aspectos. Por exemplo: os jornais locais dão muito espaço às colunas sociais. Isso significa que os leitores valorizam essas informações.  Eu pergunto: quem é que sai nessas colunas sociais? E quem assiste as peças criadas e produzidas aqui? Eu acho que se a elite passasse a prestigiar o teatro, os jornais também dariam mais espaço ao teatro. O fato de, no Rio, o público de teatro ser preferencialmente de pessoas mais abonadas, também gera reflexos que nem sempre são positivos. Todos os públicos são importantes. Na Europa, todo mundo vê teatro. No Brasil, a frequência ao teatro ainda é muito baixa.

Wellington – O que lhe motivou a deixar o Piauí anos atrás?

IB – Teresina hoje é outro local! Na metade dos anos 60, a cidade me sufocava. Era uma cidadezinha acanhada, que eu tinha e ainda tenho comigo, inclusive no meu coração. Eu achava que não podia ter asas, teria que ser como todas as mulheres que eu via. Eu era ainda muito criança e dizia: “eu não vou ser submissa”. Será que eu já era feminista? (risos). Porque havia uma submissão enorme das mulheres aos homens. Embora hoje não se possa mais comparar, ainda há uma matriz feudal muito forte no Nordeste (faz pausa e continua de modo mais lento). Eu tinha a sensação de que precisava ir embora. E um dia eu fui embora.

Wellington – O que representa o seu retorno? Você veio em busca de quê?

IB – Há algum tempo eu quero sair do Rio, porque acho que a cidade se tornou muito agressiva. Continua linda, mas problemática para se viver. Juntei essa sensação a emoções pessoais e, em 2014, vim para Teresina fugindo do movimento da Copa do Mundo (a capital do Piauí não teve jogos durante a Copa). Eu queria passar mais tempo com meus irmãos que vivem aqui.  E comecei a achar interessante voltar a morar em Teresina. Eu acho que no Rio tudo já foi feito – ou eles pensam que foi.  Então as pessoas ficaram um tanto blasé, como se tudo fosse déjà-vu, e isso não é verdade! Até porque “tu-do” não foi feito em nenhum lugar do mundo! (fala com ênfase). Sempre há alguma coisa a se fazer, a criatividade humana é uma fonte que não seca. Em Teresina há hoje um sentimento que é o inverso: as pessoas acham que tudo está por fazer. E isso também não é verdade. Eu vejo trabalhos maravilhosos aqui! Então aqui tem muita coisa, mas tem também uma consciência de que falta fazer muita coisa. Aqui as pessoas querem fazer! Isso é motivador.

André – O teatro concorre com os apelos da televisão, da internet, da tecnologia cada vez mais avançada. O que o teatro tem de diferente ou importante que se possa falar: “você não pode deixar de ir ao teatro”?

IB – A presença física do ator. Essa talvez seja a maior magia e o que há de mais forte no teatro. E não há nada mais desastroso que um mau ator. Um mau ator não compreende o texto, diminui e pode até acabar com o texto. Como linguagem, a dramaturgia do teatro é a mãe das demais dramaturgias: do cinema, da televisão, da internet. O teatro é uma arte completa: trabalha com literatura, artes plásticas, música, dança. É do teatro que vem tudo! (fala com empolgação). Cada veículo tem o seu espaço. O cinema, por exemplo, tem o fascínio da imagem, mas eu continuo a achar que a força da palavra, trazida pelo teatro, é incomparável. Houve uma época em que ficou na moda fazer teatro sem palavra, usando mais expressão corporal, mas isso logo passou. Porque teatro é sobretudo texto. O teatro depende muito mais de um bom texto do que o cinema e a televisão. Porque, com a imagem, você pode mascarar um texto medíocre. Mas no teatro é difícil. Uma coisa comum ao teatro, cinema e tevê é que se trata de uma arte coletiva. Eu faço um texto, mas dependo do ator, do diretor, e eu quero que cada um acrescente ao meu texto. Eu não quero um diretor que faça ao pé da letra o que eu digo nas minhas rubricas.

Samária – Qual a maior dificuldade hoje para alguém que escreve para teatro?

IB – A luta para montar suas peças. E é uma luta inglória, porque a montagem de uma peça requer uma grande quantia em dinheiro. No Rio, uma montagem de meio milhão não é nada.

“Se a elite passasse a prestigiar o teatro, os jornais também dariam mais espaço ao teatro”.

Samária – Um tipo de produção que tem alcançado espaço nos teatros do eixo Rio-São Paulo são os musicais que, em geral, são muito caros. O que você acha desse crescimento dos musicais?

IB – Tem musicais muito bons! Recentemente achei lindíssimos os musicais sobre Elis Regina (Elis, a musical) e com as músicas do Chico Buarque (Todos os Musicais de Chico Buarque em 90 minutos). Mas há outros muito americanizados que eu realmente não gosto. Montar alguns desses musicais exige cifras de mais de um milhão. Mas tem público e os produtores conseguem.

André – Aparentemente o teatro sofre menos pressões do mercado que a televisão ou o cinema. Talvez por isso possa se constituir num espaço privilegiado para a crítica ou a transgressão e questionamento de comportamentos, costumes. O Teatro tem esse papel de crítica e de provocar reflexões?

IB – O papel do teatro, como das artes em geral, não é o de reproduzir, mas o de discutir a vida, sobretudo de uma maneira crítica. Vejo hoje uma volta ao conservadorismo assustadora. Quando se fala em protesto, em contestação, isso tem um sentido muito diferente do que tinha nos anos 60, 70, quando existiu toda uma contestação de costumes, posturas, da moral, houve a revolução sexual. Até a postura em relação as drogas era política, pois tinha o sentido de uma transgressão. Agora, se você me pergunta o que o teatro deve fazer hoje? Eu sinceramente não sei. Eu acho que não saímos ainda da perplexidade – autores, atores, diretores. Não acho que a saída é você fazer o teatro de sátira política, porque isso é muito fácil. Aliás, o que tem de personagem é uma beleza, né? Mas eu me pergunto:  como demonstrar isso em termos existenciais? O que o avanço do conservadorismo representa para gerações e gerações? E como isso pode ser discutido? Eu fico triste quando vejo jovens desinteressados, que não sabem o que desejam fazer da vida, e escolhendo uma profissão não por gostar de fazer aquilo, mas pensando no que dá mais dinheiro. Eu acho isso de um conservadorismo gigantesco! E é um conservadorismo ligado ao capitalismo, que está transformando esses jovens em pessoas sem sonhos. Como é que nós vamos viver sem sonhos? Como você transforma as ciências, as artes, sem sonhos? O que sempre fez surgir coisas novas foi a loucura, a imaginação das pessoas.

André – Você disse que ficou impressionada com os números apontados na pesquisa Revestrés/ Amostragem (veja segunda parte da pesquisa a partir da página 36) que revelaram pouco conhecimento e consumo de cultura em Teresina. Você acha que podemos estabelecer uma ligação no que você considera um desinteresse pelos sonhos e a pouca frequência ao teatro ou exposições de arte, que, em tese, são espaços de sonhos?

IB –Como vai ser impactado pela arte o garoto que tá interessado em ter uma profissão que dê dinheiro, casar com uma moça bonitinha – de preferência da alta sociedade-, e ter filhos que serão criados do mesmo jeito que ele foi? O que é o teatro pra ele? Nada! (fala com ênfase). Talvez um bando de maluquinhos que ficam fazendo coisas sem sentido. E grande parte desses jovens são convictos de que isso é o certo e pronto. Eles não se questionam nem questionam nada, absorvem o que veem, e veem uma sociedade onde o que interessa é dinheiro, ter um belo carro, apartamento, uma casa. Vejo pequenos robôs, sem resposta, e isso me aflige muito.

Wellington – Você considera que o teatro tem influência sobre a televisão?

IB – Acho muito bom quando isso acontece, mas no Rio eu vejo o contrário: o teatro imitando a televisão. Acho um absurdo quando as pessoas que fazem teatro consideram que o público quer ver no teatro o que já vê na tevê. Agora, quando a tevê usa o teatro, pode ter resultados muito bons, como Dias Gomes, que era originalmente autor de teatro e fez novelas maravilhosas! Já temos roteiristas de tevê muito bons como Joao Emanuel Carneiro, que fez A Favorita – eu gostaria de ter escrito aquela novela! -, Avenida Brasil, e agora A Regra do Jogo. Ele traz uma dramaturgia diferente, escreve novelas sem enrolação, apresenta um conflito e fecha o conflito no mesmo dia.

“No Rio tudo já foi feito – ou eles pensam que foi. Então, as pessoas ficaram um tanto blasé, como se tudo fosse déjà-vu. Em Teresina há um sentimento que é o inverso: as pessoas acham que tudo está por fazer”.

André – Algumas pessoas consideram que a novela se tornou um gênero de dramaturgia que o autor brasileiro consegue dominar como ninguém. Outros dizem que novela não é dramaturgia ou que talvez seja um gênero menor. O que você acha?

IB – Novela é folhetim sim, mas é dramaturgia também. Acho preconceituoso dizer que novela não é dramaturgia. São formas diferentes -no teatro, no cinema, na novela – mas tudo é dramaturgia. O que existe é a boa e a má dramaturgia. No teatro também há péssima dramaturgia, e algumas fazendo sucesso.

Wellington – Você sente falta uma presença maior do teatro nas escolas brasileiras?

IB – Claro! A gente debocha um pouco dos americanos – e realmente eles têm coisas terríveis -, mas todas as universidades e escolas americanas têm teatros e investem na cultura. O que nós temos em teatro nas escolas no Brasil é muito pouco, uma ou outra iniciativa isolada e, quando existem, enfocam os atores, não os escritores de teatro.

Samária – Como você define o seu teatro?

IB– Eu gosto de pensar o meu teatro como latino-americano, tem um tom ultrarrealista sendo, ao mesmo tempo, muito brasileiro. Só agora nós, brasileiros, estamos tendo uma consciência maior de sermos América Latina. Isso é muito novo no Brasil, porque a gente achava que era Europa, né? (risos) e nosso teatro era muito europeu. Na história do Teatro no Brasil se considera um marco a peça “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues (encenada pela primeira vez em 1943). Na verdade ela foi dirigida por Ziembinski, que era polonês, mas que fez um teatro extremamente carioca, uma tragédia suburbana. Quando Juver Salcedo veio da França ministrar cursos de teatro no Brasil, as pessoas tinham a expectativa de que ele daria sua contribuição ao teatro no Brasil, e ele disse: “Eu não tenho como ensinar teatro a vocês. Descubram o teatro de vocês!”.  Enfim, acho que estamos descobrindo nosso teatro, mais brasileiro, mais latino-americano. Dentro desse universo, meu lance é com a criação de textos. Eu não seria atriz, nem diretora. Não é fácil lidar com o ator. Exige liderança, convencimento, paciência. E é compreensível que não seja fácil: você tá pedindo que a pessoa tire a alma e a coloque ali, em cena!

André – Se o ator coloca a alma em cena, o que o autor de teatro entrega ao público?

IB – A grande diferença é que ator vive um personagem, ele tem aquele personagem para colocar a alma, o que já é bastante difícil.  Já o dramaturgo coloca a alma em 20 personagens importantes. E aja alma para você desdobrar tanto! Porque cada personagem tem a sua linguagem, a sua maneira de pensar, de agir – que não é a mesma coisa: às vezes pensamos de uma maneira e agimos de outra. O personagem é uma pessoa, tem que ter uma credibilidade, pulsar, ser convincente. E tem que ter muito cuidado pra não botar você, a não ser que você seja o personagem, claro. Porque você se arrisca a fazer o que a gente chama de “fala de autor”, você coloca na boca do personagem uma fala que não é dele, é sua. Isso é péssimo, e é incrível como o público percebe. Mesmo quem não conhece teatro- mas entende de emoção, né? – vai sentir na hora. É uma trabalheira, viu? (suspira). Mas é extremamente prazeroso.

Samária – E há algum sentimento ou sensação pessoal após concluir uma peça?

IB – Eu me sinto esvaziada (fala como se estivesse cansada). Fico triste, às vezes com uma certa depressão. É como se tivesse me despedindo de um monte de gente. Uma vez fiz um curso com um roteirista francês e ele disse que quando começava a escrever, tinha necessidade de ir para todo lugar com os personagens.  Ele tinha um carro pequeno e era uma loucura, porque não cabia tanta gente, então ele escolhia os personagens que iam passear (risos). Quando ouvi isso, pensei: é exatamente assim. Eu ando com meus personagens, faço caminhadas, vou ao supermercado, eu ouço o que eles falam, acompanho os diálogos, vejo como se comportam, as palavras que usam para falar – e não adianta sinônimos, cada personagem tem as suas palavras.

Wellington – Você dedicou toda a sua vida ao teatro. Por fim, eu lhe pergunto: valeu a pena?

IB – Nunca me arrependi. Pelo contrário, apesar de toda a luta – porque é uma luta, sim-  eu não tive nenhum dia em que achasse que poderia ser outra coisa que não teatróloga. O teatro entrou na minha vida de uma maneira tão forte que eu sonhava com teatro antes de ver teatro. Eu quero ver minhas peças montadas, quero fazer sucesso, mas não é só isso: eu amo todo o processo, desde os ensaios, eu tenho necessidade disso, entende? (fala com ênfase). Com o tempo, você não sabe muito bem se escolheu uma profissão ou se ela aconteceu. Eu acho que teatro na minha vida foi acontecendo. E eu gostaria que tivesse acontecido ainda mais. Tenho peças boas que nunca foram montadas. Mas eu não paro, continuo a escrever quase todas as noites e continuo a batalhar para montar minhas peças. Nessa volta ao Piauí eu trago uma vontade muito grande de fazer um trabalho de teatro aqui, como nunca fiz. E eu acho que eu vou conseguir.

Foto: Maurício Pokemon

QUALQUER SEMELHANÇA É MERA COINCIDÊNCIA?  

A peça Clube do Leque foi escrita por Isis Baião no final dos anos de 1970, depois que a escritora passou férias em Teresina e encontrou, no cotidiano da cidade àquela época, os sons e a inspiração para os personagens. A história se passa na provinciana e quente cidade fictícia de “Maria Mole”, onde senhoras da sociedade local se ocupam ajudando a pobreza distante e competindo entre si para saber quem é mais filantropa. Há pobreza bem próxima sim, mas elas não dizem respeito àquelas senhoras. Entre os personagens, também há duas empregadas domésticas e uma jornalista, colunista social, que apresenta o programa “Por dentro do society”.

Alguns trechos do texto:

HERMENGARDA (PRESIDENTE DO CLUBE DO LEQUE)- Telefona para Helô e para Beatriz. Quero reunir a Diretoria do “Leque” hoje mesmo.

CANDINHA- A Beatriz foi pra fazenda dela.

HERMENGARDA- Hoje? Por que?

CANDINHA- Você não sabia? A piscina arrebentou!

HERMENGARDA- Como?

CANDINHA- Arrebentou e matou o filho do vaqueiro.

HERMENGARDA (ENOJADA) – E ela permitiu que o filho do vaqueiro tomasse banho da piscina dela?

CANDINHA- Não, ele tava perto quando arrebentou. Morreu na enxurrada.

HERMENGARDA- Ah! Coitada da Beatriz, uma piscina tão cara!

***

3 amigas do Clube do Leque conversam:

HERMENGARDA – Enquanto não tirarem aquela favela imunda da periferia da cidade!… Aquela gente já nasce assaltando!

HELÔ – Ainda bem que esse prefeito é homem de verdade! Vai mesmo acabar com aquela promiscuidade no Morro do Monturo.

CANDINHA- Pra instalar a usina nuclear, é verdade?

HELÔ- Claro. Você não lê jornais? Teremos uma usina nuclear, como todo os povos civilizados!

***

(NA TELEVISÃO, TAMARA, REPÓRTER, ENTREVISTA O FAVELADO JESUÍNO).

TAMARA – Vocês vão ou não vão sair daqui?

JESUÍNO – Sair pra onde? A gente não tem pra onde ir. Como é que pode, dona, tirar a gente pra botar usina? Semos 15 mil…

HERMENGARDA DESLIGA A TELEVISÃO.

HERMENGARDA- Chega! “Semos”, que horror!

HELÔ – Ai, tenho medo desse povo. Eles têm raiva da gente.

HERMENGARDA- Eles têm ódio. Nos pagam a caridade com a ingratidão.

CANDINHA- Talvez nos invejem… são tão pobres, coitados…

HERMENGARDA- E por que não trabalham pra melhorar de vida, hein?

HELÔ- O pior é que essas “negas” estão ficando cheias de empáfia!

HERMENGARDA- Pudera! São essas ideias modernas…Entrevistar favelado, onde já se viu! Antigamente os pobres eram humildes e felizes. Agora estão revoltados, agressivos.

CANDINHA- É! Quando eu me casei tinha uma cozinheira que cantava o dia inteiro. As empregadas hoje nem cantam mais!

***

(A JORNALISTA MARGOT É COLUNISTA SOCIAL DA TV ODC- ORDEM, DEMOCRACIA E CULTURA. ELA FAZ A COBERTURA DA FESTA DO CLUBE DO LEQUE, QUE ACONTECE NO YATE CLUBE DE MARIA MOLE. A CONTRAGOSTO, SEGUE A ORDEM DA TELEVISÃO, QUE PEDE QUE ELA CUBRA TAMBÉM A MANIFESTAÇÃO DOS MORADORES DA FAVELA DO MONTURO, QUE ACONTECE EM FRENTE AO YATE CLUBE)

MARGOT – Eles trazem faixas e cartazes. Vê se focaliza. Olha aí, olha aí. “Não somos lixo que se joga fora”, “A fome é mariamolense”. Que loucura, reivindicando a fome! Este senhor aqui. O senhor está protestando por quê? É comunista? Que profissão o senhor tem?

VOZ (OFF) – A de pobre, madame.

MARGOT- Olha como ele tem senso de humor!

(Publicada na edição #21, julho/agosto de 2015)