(Texto e edição: Samária Andrade. Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Wellington Soares, Samária Andrade, Luana Sena, Maurício Pokemon e João Walter Nery | Fotos: Maurício Pokemon).

Era 26 de dezembro de 2013, um dia após o natal, quando o jovem Daniel resolve publicar um texto no Facebook que começa assim: “Neste exato momento, após 26 anos de sofrimento, divido com todos vocês – amigos, colegas, familiares e professores – a razão de eu sempre ter sido muito estranho aos olhos dos normais.” O texto ainda avisa: “comece e termine ou nem inicie.” Trata-se de uma carta-confissão, em que o rapaz assume a transexualidade. Na noite anterior ele já havia se recusado a participar da festa de natal da família. Todos o esperavam, como nos anos anteriores, vestido em roupas masculinas, “e eu não suportava mais ser um ator”, diz, relembrando aquele dia.

Antes disso, o conflito já se avolumava em seus silêncios. Bom aluno, estudante de Direito em universidade particular, passou a entregar provas em branco e parou de falar com quase toda a turma. O texto na rede social – enorme para os padrões de um post – é dividido em seções e faz várias referências a pensadores clássicos. Depois daquele dia e progressivamente Daniel fez chamar-se Danny, deixou o cabelo crescer, passou a pintar as unhas e escolher batons – a princípio claros – que combinassem com as roupas femininas que sempre quis usar.

Foto: Maurício Pokemon

 Tentou por várias vezes ser aprovada em medicina, até que o irmão sugeriu: ela escrevia e argumentava tão bem, poderia fazer carreira em Direito. O curso ainda está inconcluso, interrompido não só pela tarefa hercúlea de se autodescobrir (coisa que a maioria de nós nunca vai conseguir por toda a vida), como por outra revelação que se apresentava. Convidada pela professora Fabíola de Azevedo, Danny topou o desafio de a substituir nas turmas de ensino médio onde aquela ministrava aulas. O encargo seria por apenas uma semana, enquanto Fabíola viajava. A função se estende até hoje. Danny tornou-se uma das mais disputadas professoras em escolas particulares de ensino médio. Suas aulas são de “argumentação” e ela tenta ajudar estudantes a construírem textos fundamentados na filosofia, sociologia, literatura e ciência jurídica. Fabíola, professora feminista que conheceu Danny por aquele texto no Facebook, aprendeu a admirar a amiga e apostou que ela cresceria em sala de aula, embora até hoje não concordem em alguns posicionamentos: “Eu já ouvi da Fabíola: essas transexuais querem destruir a causa feminista’”, diz Danny aos risos.

 Hoje, aos 30 anos, Danny Barradas dá aulas em 15 escolas e diz que todo o tempo livre que tem é dedicado as leituras. Não se pode duvidar. No apartamento de três dormitórios onde mora com os pais, dois quartos estão ocupados com cerca de três mil livros, organizados em estantes abarrotadas ou jogados sobre as mesas. E a cama? Ela diz que ocupava muito espaço, então se livrou daquele móvel dispensável e passou a dormir no sofá da sala.

A professora costuma se deslocar de bicicleta em Teresina e diz que ama dar aulas. O respeito e atenção que mantém pelos alunos costuma ser correspondido. De alguns pais, porém, já recebeu mensagens ameaçadoras, mas diz que não se intimida. Danny já teve um relacionamento duradouro, mas lamenta que o namorado se negasse a demonstrar carinho em público e, desde então, evita as relações amorosas.

Em meados de 2017 participou do quadro “Quem quer ser um milionário?”, de Luciano Huck, na TV Globo. A produção do programa chegou até seu nome pela fama de estudiosa e inteligente que já se espalhava. O fato de ser professora trans em uma escola de elite que foi primeiro lugar no Enem, o Instituto Dom Barreto, certamente contribuiu com a curiosidade do programa sobre a convidada. Ela deveria responder a 15 perguntas e sairia dali com um milhão de reais. Respondeu a sete e acumulou 5 mil reais. As perguntas incluíam temas como a vitamina da laranja, que arte Carlinhos de Jesus pratica ou em que estado ficam Ouro Preto e Tiradentes. Pareciam um desperdício para tanto conteúdo pessoal. Danny saiu do programa depois de 15 minutos ao vivo. Falava com suavidade e certa timidez.

Quando chegamos a casa da professora quem abre a porta é seu pai, um engenheiro baixinho e simpático, que avisa: a filha estava se arrumando. Ele nos faz sala, enquanto a mãe de Danny permanece do quarto. No espaço, fotografias da família em porta-retratos e crucifixos sobre o móvel. Danny é a caçula entre quatro filhos do casal: mais uma mulher e dois homens. Quando ela chega, não parece acordada de sonos intranquilos ou metamorfoseada em um inseto – como por vezes se refere a própria imagem, fazendo referência a obra de Kafka. O salto muito alto alonga ainda mais seu 1m80. Ela está de calça e blusa, maquiagem muito leve e o cabelo longo e natural foi clareado. Tudo é tão familiar. Danny cruza as pernas na cadeira a nossa frente, sorri e diz: Podemos começar.  

(Entrevista completa na Revestrés#35- março-abril de 2018).