(Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Maurício Pokemon, Monteiro Júnior e Samária Andrade).

Um dos cartazes na sala da casa de estar de Douglas Machado, em Teresina, é de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha. Outro é de Vertigo, de Hitchcock. O documentarista piauiense, 48 anos, começou a trabalhar com audiovisual no final dos anos 80, período em que a Televisão Educativa do Piauí – TVE – foi como um celeiro de talentos e trouxe grandes jornalistas e produtores para trocarem experiências com os profissionais locais (Pedro Bial, antes da fase BBB, foi um dos que andaram por essas paragens). Douglas tem produções em diferentes regiões do Brasil e algumas no exterior, especialmente na Suécia e na Espanha, em sua maioria como roteirista e diretor de documentários. Em Teresina, seu refúgio fica na área central da cidade. “Adoro os centros das cidades”, comenta. O apartamento onde mora com Gardênia, esposa e produtora de seus filmes, ocupa todo o segundo piso do armazém popular onde se vende roupas, bolsas, calçados. O prédio pertence à família de Douglas. É lá que ele nos recebe em nosso segundo encontro para esta entrevista, um dia que seria dedicado a fotografias. Diretor audiovisual zeloso, avisa: “Olhem, vesti a mesma camisa que usava naquele outro dia. É para não dar problemas de continuidade”.

Foto | Maurício Pokemon

Douglas é sócio da Trinca Filmes, produtora que trabalha com documentários sobre literatura brasileira desde 2001. A empresa alcançou repercussão no Rio Grande do Sul com o documentário Wilson Martins: a consciência da crítica (2012), sobre o gaúcho que foi crítico de literatura durante quase 50 anos e, por 30 anos, professor de literatura brasileira na Universidade de Nova York, onde Douglas fez parte das filmagens. O documentário, bem recebido pela crítica gaúcha, não chegou a ser visto por seu protagonista. Debilitado pela idade, Wilson Martins morreu enquanto Douglas ainda filmava o material. “É um filme sobre a saudade. Eu não gravei tudo o que gostaria de ter gravado, pela simples falta dele. Como diz Saramago: ‘ora você está, ora você não está’. E ele não estava”, diz Douglas.

A Trinca Filmes encontrou um filão que tem explorado com boas produções de nomes da literatura nacional. O primeiro surgiu quase por acaso: foi H.Dobal: um homem particular (2002), sobre o escritor piauiense. “A ideia surgiu numa conversa entre eu e Marcílio” (que dirigia a escola Instituto Dom Barreto e era entusiasta das artes). Depois o projeto cresceu e foi abraçado pela Academia Brasileira de Letras, com sede no Rio de Janeiro, que passa a sugerir nomes de autores a terem sua vida e obra retratadas nos documentários. Do segundo filme da série, O Sertão mundo de Suassuna (2003), sobre Ariano Suassuna, Douglas guarda o texto escrito à mão pelo escritor, emoldurado e tornado quadro no corredor de seu apartamento. Um trecho diz: “Só lhe pertence o que por você for decifrado”.

No mesmo amplo e simples apartamento, muitos livros, filmes, fotografias e duas salas transformadas em escritório e ilha de edição da Trinca Filmes. Tudo muito limpo e organizado. Chama a atenção a mesa de Gardênia, com seus grampeadores, perfuradores e outras parafernálias de escritório metodicamente expostos em fila. Se os dois são diferentes, Douglas prefere pensar que se completam: “Ela é uma pessoa iluminada. É verborrágica, se empolga, é sociável. Eu sou mais aquele uterino, quieto, silencioso”.

E o nome Trinca Produções? Muita gente pensa serem três sócios, mas Douglas revela que o nome faz referência a uma crise pessoal que viveu quando chegou aos 30 anos e se questionou sobre o que estava fazendo e o que desejaria fazer da vida. “Trinca” faz uma brincadeira com “trinta”, segundo conta.

Antes de se encontrar nos documentários sobre escritores, Douglas ganhou as páginas de jornal com notícias sobre o primeiro longa-metragem produzido no Piauí. Era Cipriano, roteirizado por um Douglas muito jovem, na faixa dos 22 anos, e finalmente produzido quando ele chegava aos 30. Cipriano foi uma mega produção para os padrões locais. Contou com a participação de técnicos estrangeiros, foi filmado em super 16mm, revelado na Technicolor, em Londres, e montado em Estocolmo. Depois de pronto, é exibido em salas de cinema de Teresina. “Cipriano me expôs muito, no que há de bom e de ruim. Não sei se tava preparado para lidar com isso”.

Elogiado por alguns, tido como uma obra difícil por outros, Cipriano lançou Douglas Machado, cineasta, para o público local. E também está inserido num movimento que se seguiu: o estímulo a outras produções, realizadas por produtores diversos no Piauí. Ai, que vida, produzido pelo jovem estudante de jornalismo Cícero Filho, por exemplo, seguiu algumas trilhas abertas por Douglas: foi exibido em sala cinema e trabalhou com divulgação. Com uma linguagem mais fácil e popular, caiu nas graças do público. O filme até hoje é pirateado e levou seu produtor a ser entrevistado em programas nacionais de TV. Douglas não disfarça certa preocupação sobre os rumos que tenha tomado o chamado cinema piauiense. “Me entristece muito quando vejo, no nosso estado, as informações circulando como se tivéssemos uma grande produção,  grandes cineastas, documentaristas. Quando eu vejo uma matéria no jornal piauiense sobre cinema piauiense, eu fico pensando: ‘Onde é que eu estou?’. Porque eu não consigo compreender o que está sendo escrito e o que acontece de fato”.

O que move Douglas é roteirizar e dirigir, mas há quem já o tenha visto atuando. Foi no filme Lua Cambará (2002), de Rosemberg Cariry; com Dira Paes, Nelson Xavier e Chico Diaz. Douglas era assistente de direção do cineasta cearense e, na falta de um ator para viver o papel de um francês, foi convocado. “Minha participação é sofrível”, diz aos risos. E por que aceitou participar? “Para ajudar um amigo, para as filmagens prosseguirem, por vaidade”, tenta avaliar, anos depois. Para o diretor ficou a lição de que atuar é mais difícil do que o que se pensa. “Cinema é visto com muito glamour, mas é muito duro fazer. É trabalhoso, te esgota, te consome. Enquanto você faz um filme, não acontece nada no mundo além do que você está fazendo. É uma profissão de entrega, acho que só comparável a um bom médico e um bom sacerdote”.

Atualmente Douglas está envolvido em mais um documentário da série literatura. Trata-se de A África no olhar de um poeta, sobre o continente africano através da literatura de Alberto da Costa e Silva, poeta e historiador paulista, filho do piauiense Antônio da Costa e Silva. Esse é o segundo filme de Douglas sobre Alberto da Costa e Silva. O primeiro, O retorno do filho (2009), dedicou-se à relação entre pai e filho. Enquanto isso, ainda nos mostra as latas de rolos de Cipriano, recentemente chegadas de Estocolmo. Fazem parte de mais um projeto: 12 anos depois, Douglas vai reeditar o longa-metragem. O filme estava guardado na Suécia, onde o piauiense deu aulas de produção e direção audiovisual, de 2004 a 2009, como professor convidado da Universidade Nórdica Biskops Arnö. Douglas tem um curso inconcluso de jornalismo na Universidade Federal do Piauí e vários cursos de produção e direção audiovisual na Holanda e Espanha.

Olhos pequenos, voz mansa, mas firme, fumando sem parar, ele conversa com Revestrés e avisa: “Eu não sou bom moço, sou cheios de defeitos. Tenho algo de perverso, mas não é comum querer magoar alguém”.

Nem Deus, nem o Diabo, Revestrés revela só uma parte de quem é Douglas Machado. O verdadeiro? Nem ele conhece, garante. “Vocês nunca vão saber quem é o Douglas, até porque eu, certamente, não sei”.

O cinema brasileiro tem amadurecido muito, até mais fora do eixo Rio e São Paulo, onde as produções estão mais engessadas. O cinema mais interessante produzido no Brasil nos últimos 15 anos são produções feitas no Nordeste

Samária – Tem uma fala do cineasta carioca Joaquim Pedro de Andrade que ficou famosa no final dos anos 80. Tornou-se recorrente ele ouvir a pergunta: “Por que você faz cinema?”.  Entre outras coisas, respondeu: “para chatear os imbecis, para viver à beira do abismo, para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público”. E Douglas Machado, por que faz cinema?

Douglas Machado – Eu tenho uma paixão por cinema desde muito pequeno, mas antes de tudo tenho consciência que cinema para mim é a possibilidade existir do ponto de vista pragmático. Esse é um lado. O outro vem das minhas indagações humanas. O que eu sou está nos filmes que faço. Se é impossível viver sem o cinema porque preciso pagar minhas contas, por outro lado, para existir, como ser humano, eu preciso produzir filmes, porque isso me faz bem. Todos os momentos de depressão que eu tive, e foram inúmeros, sempre foram salvos quando eu pego uma câmera ou estou na frente de uma ilha de edição. Mas isso não me faz nenhum artista especial. Eu só tive sorte de ter descoberto isso cedo. Cinema é a minha vida, do ponto de vista prático e existencial. Ter convivido muito próximo com meu irmão mais velho, Marden, me ajudou bastante porque ele sempre foi apaixonado por cinema, literatura, quadrinhos. Ter uma formação cultural é muito importante.  É difícil imaginar alguém que faça cinema se ele não tem uma relação muito próxima com os bens culturais.

Monteiro – Que hora você se considerou: “eu sou cineasta”?

DM – A sensação mais próxima que tive disso foi com Cipriano. Confesso que por muito tempo não acreditava que pudesse dirigir algo sozinho. Eu já dirigia algumas coisas exibidas na televisão, mas Cipriano foi a minha entrada no cinema mesmo. E o filme demarcou um diálogo muito frontal com o público. Teve avant premier no Teresina Shopping, com objetos de arte e figurino expostos, aquilo tudo era muito novo para mim também. Nós ficamos cerca de dois meses em exibição nos cinemas da cidade.  Foi quando eu percebi: “eu tô sendo amado e odiado, as pessoas tão falando de mim”. O tempo inteiro tinha alguém escrevendo, a favor ou contra Cipriano. Eu disse: “eu tô dirigindo filmes! O diálogo com o público realmente existe!”. Depois Cipriano foi comprado pelo Canal Brasil e já estamos na quarta renovação de contrato. Foi traduzido para o inglês, francês, e começou a ser tema de monografias, teses, em universidades por todo o Brasil. Eu tenho um carinho por Cipriano porque ele me expôs muito, no que há de bom e de ruim. Você percebe que tem uma responsabilidade no seu trabalho, ele reverbera de alguma forma sobre as pessoas.

Monteiro – Teve algo dessa repercussão que deixou você triste?

DM – Com a idade a gente vai ficando mais tranquilo (risos). Mas é engraçado: algumas pessoas, quando não gostam do seu trabalho, ficam agressivas. Vieram as críticas em Jornal, que são legítimas. Mas uma coisa me deixou impressionado: uma jornalista escreveu “eu fui a Cipriano e paguei o ingresso”. Mas claro! Você paga o ingresso para ver filmes de pessoas que você nunca vai conhecer e não pode pagar o ingresso de um filme feito por um conterrâneo seu? Eu tenho orgulho de Cipriano ter sido amado e odiado. O pior que pode acontecer com uma obra de arte é não provocar reação.

André – Da estreia de Cipriano já são doze anos. E hoje, como você avalia o filme e a sua maturidade profissional?

DM – Talvez hoje eu tenha mais coragem do que tinha na época. Eu decidi remontar Cipriano, e agora tendo por base o meu primeiro projeto, como eu realmente tinha concebido, que era mais uma experiência audiovisual do que uma coisa explicada. Não tinha narração, nem trilha sonora, a morte não tinha globo ocular, era só um vazio. Eu fui mudando muita coisa porque eu tinha receio da população achar o filme estranho. Mas a minha ideia original era que tu tinhas que abrir a tua porta de compreensão e tentar preencher as lacunas. Hoje eu quero fazer isso. Já tô com equipe técnica fechada.

Samária – E quanto ao receio de não ser compreendido pelo público?

DM – Eu estou mais velho e tenho condições de levar pancadas maiores sem sofrer tanto (risos). Não tenho mais medo de não ser compreendido. Eu tive algumas angústias em relação às exibições no interior do Piauí, mas o filme teve uma recepção muito boa (Cipriano foi exibido em Piripiri, Piracuruca e Oeiras). No interior piauiense as pessoas entendiam muito mais que na capital. É que nem você dizer que Machado de Assis não pode ser entendido numa escola pública do interior, que Drummond não pode ser absorvido pelo operário de uma construção. Essa soberba intelectual dos que gerenciam os órgãos públicos, dos que detém o poder de gerenciar onde cada produto cultural deve ir, cerceia muito as pessoas de terem uma apreensão maior.

Monteiro – Como é a sua relação com o público?

DM – Eu respeito o público, mas não vou julgá-lo no sentido do que iriam ou não entender. Eu prefiro chegar e dizer: isso é o que eu faço, e esperar que gostem. Porque qualquer diretor, qualquer artista, que diga que não está preocupado com o que público acha de suas produções, está mentindo. Isso não existe. Nós queremos que as pessoas gostem do que a gente faz, ou pelo menos tenham interesse, falem, levem para casa. Isso é tão bom, fazer um trabalho que reverbera no público. Para manter uma honestidade com meu trabalho, que eu respeito muito, preciso ser verdadeiro com esse público, e esperar realmente que eles possam ter algum tipo de comunicação com o que eu faço.

Samária – A gente pode considerar que seu primeiro filme tenha sido mais autoral que a série sobre literatura?

DM – Eu acho que todos são autorais. Até o momento viabilizei produtos que preenchem indagações que eu tenho. A série de literatura me faz conhecer pessoas que eu já conhecia através dos livros ou que, por alguma razão, eu queria conhecer. São pessoas com as quais eu aprendi muito. Acho que até o filme João (sobre a vida do empresário João Claudino Fernandes) é autoral. Esse é um filme que ainda não chegou para o público por questões que cabem ao protagonista decidir. Quando eu recebi o convite, perguntei se ele queria que fosse eu mesmo que dirigisse, porque minha tomada é muito humana, meu olhar é próximo do personagem. E ele compreendeu e ajudou muito. Então mesmo neste, que foi , digamos, um filme de encomenda, tem muito do que eu acredito como cinema verdade. Cinema é uma arte curiosa porque você emociona as pessoas, faz com que chorem, riam, sintam medo, mas tudo isso é conseguido de forma técnica. O melhor diretor tem que, necessariamente, ter um conhecimento técnico grande, do contrário não vai saber manipular os elementos que tem: luz, música, som ambiente, direção de arte – todos, elementos técnicos, mas naquele momento em que você está assistindo o filme, tudo se dilui num processo emocional.

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Foto: André Gonçalves

André – Seu documentário mais recente, sobre Wilson Martins, retratou um grande crítico de literatura que escreveu por quase 50 anos nos jornais do sul do Brasil. Como você avalia a crítica hoje?

DM – O que está acontecendo no Brasil acontece no mundo todo: faltam vozes com opinião apurada. É uma pena. Às vezes o crítico recebe vários livros na semana e tem que escrever resenhas muito rapidamente. Não há mais aquele tempo de leitura adequado ou de se apreciar um filme duas, três vezes, antes de escrever. Isso faz com que não tenhamos um grande nome na crítica, hoje. Wilson Martins era um grande nome, você podia gostar ou não, mas ele tinha opinião, era independente nas suas ideias. Hoje existe pouca independência intelectual nas pessoas que escrevem nos jornais, revistas, talvez por um esvaziamento intelectual também. Não saberia dizer ao certo a raiz do problema, mas sinto que há uma irresponsabilidade muito grande do jornalismo como um todo, das pessoas que escrevem, acerca do que elas estão escrevendo.

Monteiro – Isso existe em todas as áreas? No cinema, por exemplo?

DM – Claro. Aqui, quando tu abres um jornal sobre algum produto audiovisual são todos cineastas, produtores, e não há uma pesquisa sobre que tipo de fundamento há em cada produto, que tipo de diálogo, acadêmico ou outro, que qualifique uma produção audiovisual, que avalie criticamente em que patamar estamos. Eu vejo matérias e, olha, é muito complicado falar sobre isso, espero que eu consiga me explicar bem. Mas um jornal, uma revista, quando trata de audiovisual, diz “cineasta tal fez isso, Douglas fez Cipriano, Monteiro Júnior fez aquilo, Cícero Filho fez Ai que Vida”.  A impressão que você tem é de que todos estão produzindo igual, com igual empenho, diálogo com o público, mercado e por aí vai. E não é bem assim. Então essa bagagem de informação não chega ao leitor, porque as pessoas que escrevem não têm o interesse de pesquisar. Quando muito se pesquisa é aquele Google rápido, que você cola aquilo, ou raciocina a partir daquilo, o que muitas vezes pode ser ainda pior porque deturpa ainda mais. Acho que isso se banalizou de tal forma que faz com que nós sejamos muito mais desinformados, quando lemos um artigo sobre determinado assunto, do que informados. Não estou dizendo aqui que deva dar uma atenção maior a uma pessoa ou outra. A questão é a falta de percepção sobre o que é um filme e o que é uma expressão artística, que é legítima, verdadeira, mas se esgota aí. Se não estabelecermos diferenças, vamos mesmo dizer “fulano é cineasta” e ele não é. Nós vamos continuar lendo matérias rasas sobre cinema piauiense e sem saber quem somos nós. E, ainda pior do que você não fazer, é não reconhecer que você não faz.

Samária – Você é cineasta?

DM – A rigor eu sou cineasta sim, mas me apresento muito mais como documentarista. Todo documentarista é um cineasta, na verdade, mas por ser uma voz pública tenho que ficar atento ao que digo. Como temos na nossa cidade uma sociedade que vive de muita aparência, esse nome cineasta é como se fosse uma Land Rover e eu prefiro que vejam que eu dirijo um Gol. Eu tomo esse cuidado, como uma brincadeira, uma provocação, mas dificilmente me autointitulo cineasta.

Samária – Você considera que pela ausência de uma análise mais crítica ou mais criteriosa fica uma certa empolgação com o que seria o cinema piauiense?

DM – Eu acho que é preguiça, mesmo. Nós vivemos em uma sociedade absolutamente preguiçosa. São pessoas que fazem uma coisa e já querem se intitular como a tal. Todo mundo sabe fazer tudo. É muito difícil você encontrar um profissional aqui em Teresina, na minha área pelo menos, que diga “não, isso eu não sei fazer”. E olha que põem preços altíssimos! As pessoas não querem ler, não querem se empenhar, se esforçar. E tem que se esforçar. Você não pode fazer um filme com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Isso podia no tempo do Glauber Rocha, no Cinema Novo, que eu admiro muito, mas hoje você tem que saber que público quer atingir, tem que ter um roteiro, pagar roteirista, técnicos, elenco, além, é claro, de se importar com o conteúdo, o conceito, pensar o filme. Nós estamos vivendo numa sociedade de pessoas que dizem que fazem e não fazem, que usam a aparência, mas são da profundidade de um pires. Isso eu acho que está acontecendo em toda essa produção que nós temos, seja no jornalismo, na música, na cultura em geral, nos governantes. Essa, para mim, é uma boa expressão para representar a sociedade de hoje: uma sociedade preguiçosa. Não quer acordar cedo, não quer trabalhar, só quer ganhar.

André – Você se refere ao campo do trabalho. E nas relações pessoais?

DM – Também somos preguiçosos. Até as amizades, as relações humanas, se afrouxaram muito. Eu gostava de conversar com o Padre Florêncio, e ele dizia: “como é difícil amar”. Uma palavra desgastada, mas difícil de ter o seu conceito solidificado. Se você não compreende alguém por alguma razão, é mais fácil negá-lo do que chegar e dialogar, perguntar o que está acontecendo.  Como as relações humanas estão preguiçosas! Porque tem que ter um esforço mesmo. Casamento, amizade, relação entre os familiares, todas exigem um empenho.

André – Essa certa desilusão com o que você está chamando de uma sociedade de preguiçosos interfere no seu trabalho?

DM – Sempre interfere, né? Se você está trabalhando com alguém e tem que dizer: “você é preguiçoso”, é muito desconfortável. Eu acho que a raça humana é complicada demais. Mas eu diria que há chance de melhora quando você se atém para os detalhes. Eu tento contribuir naquelas coisinhas que estão ao meu redor, fazer um café na minha casa, no meu trabalho, partilhar pequenas coisas com alguém. Mesmo quando me sinto magoado, e é impossível estarmos vivos sem nos magoarmos, eu procuro compreender, tento dialogar. O silêncio sempre foi muito agressivo pra mim.

André – Sobre os cinemas de rua, que entraram em um processo de extinção no Brasil, o que isso muda no nosso modo de ver o cinema, consumir os filmes, na nossa percepção sobre o que é o cinema?

DM – Nisso eu sou bem tranquilo. O fato do cinema hoje estar acondicionado num shopping é efeito de uma série de coisas. Nós vivemos em cidades mais violentas, o cinema se tornou mais caro e ficou meio inviável uma sala de cinema isolada. Existem cinemas de bairro em vários países do mundo, cinemas de centro e também complexos onde são exibidos vários filmes. Se esse complexo está dentro do shopping, para mim não é problema. Eu acho até que o cinema hoje é mais democrático do que anos atrás. E olha que eu sou um pouco nostálgico, mas no caso do cinema fico muito feliz em ver garotos compartilhando filmes que não chegam a Teresina. Sou favorável que haja  incentivo para que escolas projetem filmes, associação comunitárias ganhem projetores, como já existem vários casos. Acho que hoje as escolas têm mais condições de manter um cineclube. Basta ter interesse, porque o equipamento está mais barato.

Monteiro – Isso pode afastar as pessoas da sala de cinema?

DM – Em hipótese alguma. Por quê? Porque somos humanos. Você olha para o homem primitivo e ele estava ao redor de uma fogueira, em grupo. Então nós vamos continuar indo ao cinema. Já mataram o cinema várias vezes: quando entrou a televisão, com a chegada do VHS e a popularização do homevideo, mas o cinema vai continuar por uma razão primitiva: porque precisamos nos aglomerar, sentir medo juntos, nos emocionar juntos. É muito mais interessante ver um filme de terror no cinema que em casa. O que eu diria é que está mais caro ir ao cinema. Outra questão é que o próprio espaço físico do shopping, de certa forma, delimita alguma classe social. Mas acho que vivemos um bom momento em relação ao cinema, nunca se teve tanto acesso à produção audiovisual como se tem hoje. Eu fico feliz que o cinema seja divulgado e quebre as fronteiras através do compartilhamento. Mas é compartilhamento, viu? Pirataria sou contra, porque mexe com dinheiro ilícito, você copia e ganha dinheiro sem a pessoa ter disponibilizado. Os filmes da Trinca Filmes todos são destravados. Nós queremos que as pessoas copiem e compartilhem.

Samária – Você se refere a esse momento bom do cinema, mais democrático quanto a produção e as possibilidades de compartilhamento. Há dois filmes nacionais bem comentados nesses primeiros meses do ano: De pernas pro Ar 2, que estreou em mais de 700 salas, e O Som ao Redor, em 13. A distribuição continua sendo uma dificuldade?

DM – Sim, primeiro porque nós temos poucas salas de cinema. Teresina, a capital de um estado, só tem 8 salas. Isso não é nada! A quantidade de salas no país todo é pequena. E dentro disso entra mesmo a questão do mercado de distribuição. Vou dar uma explicação para que possa ser compreendido: de modo geral o cinema pode ser dividido em duas esferas: cinema de entretenimento e de autor. O de entretenimento é aquele que tu vais quando tá cansado, querendo relaxar, ver um Homem Aranha, Matrix, Tropa de Elite. O cinema de autor é aquele que exige do público uma predisposição em assisti-lo, normalmente investiga mais na linguagem, arrisca mais na estética, no conceito, mas os dois são muito importantes para a cinematografia de qualquer país. Nos dois lados existem filmes bons e ruins. O que acontece é que, se não somos intelectualmente estimulados, dificilmente vamos, por nós mesmos, nos estimular em ver O Som ao redor, do Kleber Mendonça Filho, ou de Pernas pro ar 2. E não estou querendo fazer juízo de valor, mas O Som ao Redor vai exigir mais, e olhe que eu acho que ele pode ser compreendido perfeitamente. Não é um filme difícil, é maravilhoso, dos melhores que vi nesse último ano. Mas um filme é exibido quando há demanda. Aqui em Teresina se traz um filme como A árvore da vida, do Terrence Malik, e o cinema estava vazio! Aqui se reclama muito: “Ah, não tem cinema, não tem filme de autor”, mas na hora que aparecem esses filmes, as pessoas não vão. E se as pessoas não vão, esse tipo de filme vai ser descartado. Público de cinema de verdade, variado, existe em Porto Alegre, Rio, São Paulo, Belo Horizonte. Aqui em Teresina nós não temos. Isso dificulta a distribuição de alguns desses filmes.

Samária – O público maior nas obras mais populares traz dificuldade para a sobrevivência de produtos mais específicos, pelo menos nas regiões mais pobres?

DM – É que nem forró Calcinha Preta e essas merdas todas. Por que chega tão rápido? Porque as pessoas não estão ouvindo Milton Nascimento, Nelson Freire, Villa-Lobos? Eu acho que o problema sempre termina em educação. Por isso só acredito que vamos ter um Brasil melhor quando houver uma decisão séria de investimento na educação. E tem que ser um projeto a longo prazo, algumas situações só vão reverter em duas gerações seguintes, não vai ser nesses jovens que estão aí.  Estamos atrasados em todos os sentidos. Estamos nivelando as coisas por baixo e a educação é uma delas. Você tira pelo que se consome de música, livro, cultura em geral, que de certa maneira forma a base de uma sociedade. Não acho que deva haver uma censura em relação ao que deve ser consumido na cultura, não é essa a questão. Acho que deve haver uma dedicação forte de Governo, que não se limite a seu espaço de quatro anos, que seja um projeto de Brasil. A educação pode mudar um país, uma sociedade. Eu acredito nisso.

Nós vivemos em uma sociedade absolutamente preguiçosa. As pessoas não querem ler, não querem se empenhar, se esforçar. E tem que se esforçar. Você não pode fazer um filme com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Isso podia no tempo do Glauber Rocha.

André – Tivemos recentemente a entrega do Oscar. Até que ponto vai a relevância do Oscar, do ponto de vista de valorar o que é realmente bom?

DM – Já há bastante tempo o Oscar não é propriamente uma premiação da qualificação do cinema de hoje. Mas é um grande programa de TV, que tem que ser respeitado assim. Pôxa, quase o mundo inteiro, naquele momento, para e vê aquela festa. Isso não pode deixar de ter uma importância. Mas é uma premiação muito mais de mercado que de qualificação da produção. O filme “oscarizado” é o que vai dar ressonância de mercado. Eu gosto de pensar ao contrário: o que me preocupa não é o filme que vai ganhar, mas como as pessoas estão vendo esse filme? As pessoas estão indo só porque ganhou o Oscar ou porque o assunto interessa? Isso que me interessa e, às vezes, me assusta mais. Grande parte dos filmes “oscarizados” entra num mercado onde o filme é um item entre vários. O cinemão hoje, de mercado, não vende só o filme. É como a relação da sala de cinema com a pipoca e refrigerante. O aporte financeiro vem mais da pipoca, refrigerante, chocolate, que do ingresso. No filme tem o livro, a trilha sonora, a cueca, a toalha, a capa de caderno escolar. O filme vende para a televisão, vende o DVD, o Blue Ray, depois é lançado como edição de luxo. Faz parte de um grande mercado.

André – Há uma ansiedade no Brasil quanto à participação no Oscar. É como se o fato de nunca ter ganhado signifique que o Brasil não tenha bons filmes, atores, cineastas. O que você pensa sobre isso?

DM – Acho uma besteira o Brasil se preocupar com Oscar. Acho que o cinema brasileiro tem amadurecido muito, tem produções absolutamente interessantes, e até mais fora do eixo Rio e São Paulo, onde as produções estão mais engessadas. O cinema mais interessante produzido no Brasil  nos últimos 15 anos são produções feitas no Nordeste. Tem o Karim Aïnouz, que é de Fortaleza, e é um cineasta por quem eu tenho grande admiração, com O Céu de Suely, Viajo porque preciso, volto porque te amo, Madame Satã. Tem o Marcelo Gomes, de Recife, que trabalhou com Karim e fez Cinemas, Aspirinas e Urubus. Tem o Cláudio Assis, também de Pernambuco, com Febre do Rato, que é um espetáculo; e o Kleber Mendonça Filho, de Recife, com os curtas, que são geniais, e agora o O Som ao redor. São todos filmes de se orgulhar!  No Ceará tem Alexandre Veras, Ivo Lopes Araújo, Danilo Carvalho que produziu Super memórias, um filmaço de autor! E é muito bom saber que essas pessoas não estão preocupadas com a corrida do Oscar. Sim, temos Oscar. E daí? Vamos ver os vestidos lindos dessas mulheres (risos), vamos ver o espetáculo na TV, que eu acho interessante. O Oscar mesmo eu acho uma grande bobagem. Só acho engraçado saber que o alto escalão de um país europeu ou dos Estados Unidos está, naquele momento, assistindo a mesma coisa que um cidadão teresinense no Mocambinho 1,2,3,4, que parece até série dos filmes do Stallone.

Samária – Que filme, na sua avaliação, era o melhor na última entrega do Oscar?

DM – Disparado, Amor, filme francês de Michael Haneke. Qual o nome dos outros mesmo? (risos). Adorei Argo, um filme muito bem montado. Achei Django divertido, mas acho que Tarantino é Tarantino. É como Almodóvar. Os elementos de um filme se repetem demais em outros. A diferença é que eles conseguem imprimir uma autoria. E Tarantino entende muito de cinema.

André – Para finalizar, você gosta de falar de saudades, angústias, mas você é bem humorado, irônico. Quem é o Douglas?

DM – Não me acho bem humorado, mas ranzinza. Vocês nunca vão saber quem é o Douglas, até porque eu, certamente, não sei. Eu vou parafrasear o Alberto Da Costa e Silva, na entrevista que fiz dois meses atrás com ele. Não vou dizer quem sou, mas o que eu gostaria: eu gostaria de ser bom, no sentido de não atrapalhar as pessoas, gostaria que o saldo credor fosse maior que o devedor, gostaria de estimular mais as pessoas. Mas não posso gerenciar exatamente quem sou ou o que eu gostaria de deixar, porque somos nós e nossas projeções. Muitas vezes digo uma coisa e sou compreendido de outra forma, e tão pouco posso gerenciar isso. O leitor de Revestrés, por exemplo, que nunca me conheceu pessoalmente, vai também ter uma construção de um Douglas que eu não tenho o menor gerenciamento. Quando digo “somos uma cambada de preguiçosos” – no Brasil todo e em especial no Piauí – quero que isso sirva muito mais como um estímulo do que como uma negação ou que provoque raiva nas pessoas. Mas não tenho a menor condição de gerenciar isso.

Após instantes de silêncio, Douglas diz: “Vocês estão com um problemão. Vai dar o maior trabalho editar tudo o que nós conversamos aqui”.

André – Não tem problema. Nós não somos preguiçosos.

Risos.

(Entrevista publicada na Revestrés#07 – Março/Abril 2013)

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