(Participaram desta entrevista: André Gonçalves, Samária Andrade, Welington Soares, Luana Sena e Paulo José Cunha)

 

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(Foto: André Gonçalves)

Na estrada que leva ao litoral do Piauí, a voz de Claudete preenche os espaços. Começa a contar histórias e pensamos em anotar. Ela promete que vai repetir tudo. “Eu quero falar tanta coisa pra vocês”, diz. E sugere: quero que vocês me perguntem isso, aquilo… Em Piracuruca, ensina onde fica a Margareth, segundo ela, o melhor bolo do Piauí. “Essa é ‘a’ parada, e não aquele posto onde todo mundo para. O dono de lá até cortou as mangueiras! É o progresso. Um absurdo”. Da calçada da Margareth nos damos conta da ausência dos frondosos pés de manga do posto, agora substituídos por uma ampla calçada cimentada. De volta à estrada, Claudete saca o celular e envia um selfie para a amiga que está na Holanda. “A tecnologia é ótima!”.Não. Não era o plano ir para a entrevista levando a entrevistada.

Na ideia original, ela estaria em Barra Grande, a quase 400 quilômetros de Teresina. Um povoado de pescadores que fica no município de Cajueiro da Praia e começa a viver os primeiros impactos do turismo. Claudete tem uma pousada no local e se divide entre a praia paradisíaca, Teresina – onde mora em apartamento alugado, e o resto do mundo – para onde viaja sempre que pode. Na manhã anterior recebo uma ligação de Claudete, que estava em Teresina. Queria uma carona até Barra Grande. Ela fala com aquela voz de Barra Grande: ma-is len-ta que a mi-nha, com um tem-po maior que o meu, qua-se com brisa entre as palavras. Topei na hora. Talvez em parte porque eu falava com a voz de Teresina: apressada, irrefletida, quase com uma ampulheta contando o tempo entre o trânsito e o almoço.

Na manhã seguinte, a bagagem de Claudete é a maior: “É que de Barra Grande eu vou pra Ilha das Canárias”, explica. A historiadora também é ambientalista e tenta contribuir com um trabalho educativo em vários outros locais do litoral do Piauí. Levava ainda notebook- “vou ficar em Barra Grande e escrever um pouco. Estou terminando dois livros”- e uma peça de metal que enche o bagageiro – serviria para consertar uma goteira insistente em sua pousada. É Claudete quem tem que resolver quase tudo sozinha. Ela não casou e não tem filhos. Garante que tem sobrinhos que valem por filhos. “Sou tia, mas não titia”, ensina.

Claudete. Até o nome parece de uma garota papo-firme que você queria ser. No início dos anos 70, adolescente, deixou a pequena São Raimundo Nonato, no sul do Piauí, onde nasceu, e veio estudar História na Faculdade de Filosofia de Teresina. Pouco tempo depois, era convidada para protagonizar cinema super8, contracenando com Torquato Neto (ver box). “Ela era a menina mais bonita e extrovertida da faculdade”, conta-nos Antônio Noronha, dias antes da entrevista, explicando por que  a convidou. Noronha era médico recém-formado, professor da faculdade, amigo de Torquato e um dos líderes do movimento de cinema experimental que tomava conta do mundo e também de Teresina, àquela época. “Eu era uma abestadinha. E ele já era o Torquato!”, diz Claudete, em sua interpretação para o mesmo caso.

Para as outras jovens, Claudete era a garota do ano: aquele tipo que, em dada época, parece onipresente. Na faculdade, na tela de cinema, na turma underground, metida com os intelectuais, ouvindo música-cabeça. Todos os olhares pareciam querer Claudete.

Ela já tinha ensaiado algumas aventuras antes. Menores, é verdade. Mas ousadas para uma garota de 15 anos, que morava no interior do Piauí. Foi nessa idade que ela pegou um ônibus e, três dias de viagem depois, estava pela primeira vez em São Paulo, onde viveu por quatro meses. “Fui assistir ao vivo o programa Jovem Guarda, de Roberto Carlos; conheci o mar em Santos, fui para festas de artistas, conheci o MASP. Foi quando eu conheci a grande cidade”.

Com Torquato e sua trupe pós-tropicalismo, virou musa de cinema. O artista multimídia piauiense disse que agora todos os filmes dele já tinham uma estrela. Fizeram dois: “O Terror da Vermelha” e “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”, ambos em 1972. No auge da euforia produtiva, a garota do ano viveu a dor da partida do amigo. Torquato se suicidou no mesmo 1972, no Rio de Janeiro, aos 28 anos, depois de viver a temporada em Teresina, produzir os filmes e se internar voluntariamente numa clínica para pacientes psiquiátricos. A musa, que se admite namoradeira, garante que nunca namorou Torquato. “Foi um encontro de almas”.

Outras aventuras vieram. Claudete formou-se em história pela UFPI e se mudou para o Rio.  Os próximos passos a levaram para a academia. Ela passou no concurso da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e começou a dar aulas na faculdade. Tinha um apartamento na capital carioca que, como ela diz, “era a embaixada do Piauí” – para estudos, festas ou uma boa conversa. Pouco tempo depois ingressava na Universidade Federal Fluminense – UFF, para fazer mestrado. Concluída essa etapa, e com o fim de um romance, foi diagnosticada com stress. O tratamento? Afastar-se da intensa vida carioca, descansar, quem sabe numa praia. Transferiu-se para a Universidade Federal do Piauí. E é nesse tempo que Barra Grande entra em sua história.

Ela comprou uma casa de pescador que pouco teve alterações em sua estrutura. Continua com ar rústico. Um tempo depois, estava de volta ao Rio, desta vez para fazer doutorado. De lá foi para Paris, onde fez parte dos estudos, e depois, ainda, pós-doutorado. De volta a Teresina, dois anos depois estaria se aposentando, não sem certa mágoa: sente-se cheia de vida, com capacidade de contribuir, mas deixada à margem.

A historiadora já transformou suas pesquisas de mestrado e doutorado em livros. Tem outras publicações, fruto de projetos de pesquisa, como o livro “Que história é essa?”, em que lança novos olhares sobre datas e acontecimentos históricos. Envolve-se em política ambiental e, em Barra Grande, participou do movimento que embargou a construção de uma praça, que aconteceria próximo à praia. No povoado, também comandou o projeto de extensão “Ambiente-se”, que buscava educar as pessoas a recolherem o lixo. “Me chamavam de louca, sabia? Então parei. Não sou irmã Dulce, nem Madre Teresa de Calcutá. Foi muito cansativo”.

Depois de aposentada, ela resolve fazer da casa de praia uma pequena pousada. Mas não recebe todo mundo. Tem que ser amigo ou indicado por alguém. Reclama dos turistas exigentes que chegam querendo um quarto forrado. Os seus, na casa maior e no único chalé, têm teto de palha, mas split e chuveiro elétrico. A dona batizou a pousada de “Pedaço do Paraíso”. Mas não há placa que indique isso e a casa, baixinha-branquinha-janela azulzinha, passa quase invisível ao lado de uma das mais procuradas pousadas do povoado. Claudete tenta oferecer conforto, mas não abre mão do estilo “turismo Barra Grande” em que acredita: do pé na areia, da calma e da contemplação da natureza. “Você tá se sentindo confortável?”- pergunta a cada um de nós, citando nossos nomes. André responde por mim: “E como! É a primeira vez que ela faz entrevista deitada na rede”.

Claudete é ame-a ou deixe-a. Se lhe amar, ame-a mesmo em suas contradições. A historiadora- ambientalista-quase hippie-vida de praia-roupa de canga, toma café solúvel, bebe suco de caixinha e a toda hora olha ansiosa o celular e as redes sociais. Ela é divertida e deliciosamente humana. Mas se lhe deixar, não pense que lhe causa grandes danos. Claudete ama a liberdade e acha que sua geração ainda sofre da pressão de ter marido e filhos.

Na manhã seguinte, o café tem bolo lá da Margareth de Piracuruca e beiju quentinho feito pela Dona Maria, sua ajudante desde que a historiadora chegou a Barra Grande e que faz um dos melhores peixes do local – comprovamos. Vamos à praia todos juntos. Tudo estava calmo naquele dia, do jeito que Claudete gosta. Na volta, arrumamos as mochilas e nos despedimos, perguntando: “Quando você volta para Teresina?”. E ela: “agora, com vocês”.

Não. Não era nosso plano voltar da entrevista trazendo a entrevistada. Mas Claudete nos ensina: só tem história para contar quem foge dos planos.

 

André – O que uma pessoa tão vivida, que morou no Rio e Paris, encontra em Barra Grande?

Claudete Dias – Sossego, tranquilidade e paz. A oportunidade de viver comigo mesma e a natureza. Porque a minha vida sempre foi muito agitada. Então, quando  eu conheci Barra Grande no réveillon de 1983, eu me apaixonei à primeira vista. Quando no Rio, em 86, uma médica me indicou um tratamento para stress, eu voltei para Barra Grande. E o que era meu tratamento? Nenhum remédio. Era pôr do sol, banho de mar, dormir cedo, contemplar a natureza. Todo mundo sonha em ter uma casa, uma pousadinha à beira-mar e, em Barra Grande, eu vivo este sonho. Em 88 eu comprei esse terreno e arrumei essa casa, conservando a construção anterior. Todas as casas da rua eram assim: casas de pescadores. Eu quis fazer a minha igual às deles. Hoje ninguém mais tem a casa de pescador. Só a minha continua.

André – Como você vê a recente transformação que vem acontecendo em Barra Grande, por conta do turismo?

CD – Com o turismo chega tudo o que ele tem de bom e ruim. Há a melhoria na qualidade de vida, oferta de empregos, a iniciativa privada investe em hotéis, pousadas, restaurantes. Mas não há nenhum planejamento pra nada. O governo não existe! As pessoas constroem do jeito que querem. Então há um avanço do turismo sem controle. Barra Grande é atraente porque é um povoado de pescador- rústico, simples, natural, as pessoas ficam nas portas, vendo o tempo passar lentamente. Mas o turismo transforma isso. O interesse econômico não pensa na preservação, mas em ganhar dinheiro. Querem encher tudo de bangalô, bares, festas, porque o tu-ris-ta quer isso! (arrasta as palavras). E a multidão invade, passa por cima, “trepa” na frente da minha casa.  Se você quer turismo urbano, fique lá na cidade, minha filha. Aqui o conceito é o da contemplação (pausa). Agora eu sei que esse meu conceito não tá na cabeça de ninguém, né? (risos). Não passo de uma ambientalista apaixonada. Mas não falo isso só por paixão. Eu estudei, é a minha profissão.

Luana – Como ambientalista você já se envolveu diretamente em muitas questões em Barra Grande. O que pensa sobre o trabalho de cuidado com o meio ambiente aqui?

 

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(Foto: Mauricio Pokemon)

CD – Eu dava oficina, cursos, trazia gente pra palestras, promovia concurso. Mas é muito difícil, porque o poder público não se interessa e as pessoas não entendem. Parei porque eu não sou irmã Dulce, nem Madre Teresa de Calcutá. Foi muito cansativo. Em Barra Grande, boa parte da população é analfabeta e há também interesses políticos que não são de conscientização de nenhuma ordem. Então eu sou um material humano preparado, mas, aqui, não tenho significado como professora, pesquisadora, ambientalista. Então eu resolvi fazer a minha parte: sei escrever, pesquisar, ler, cuidar da minha rua. Continuo fazendo isso.

 

André – Como historiadora, você estudou a formação do povo do Piauí. É possível estabelecer algum paralelo com a formação do povo piauiense e um certo descuido no tratamento de algumas questões?

CD – Sim. E não só no Piauí, mas na colonização brasileira como um todo, que foi um processo que tratou de esconder a história. No Piauí talvez isso seja mais grave, porque a nossa história é praticamente desconhecida. E a falta de conhecimento sobre sua história forma cidadãos individualistas, acomodados, enquanto outros autoritários e elitistas. Há uma defasagem muito grande na sociedade piauiense em termos de conhecimento, cultura, leitura. Nós temos o maior acervo de pinturas rupestres do mundo, e isso não vale nada para o Piauí! Porque, como não se conhece, não se tem a sensação de pertencimento. O Piauí cresceu dessa maneira: a sua história foi abafada, está sob os escombros da memória.

Samária – O Piauí é de fato um estado meio isolado do resto do Brasil ou isso não se confirma?

CD – Na minha tese de doutorado eu estudo documentações de época, memórias, roteiros de viagem. E o que eu encontrei? Que o Piauí era extremamente ligado ao Brasil todo, por rotas, onde passavam viajantes, boiadas. O Piauí comercializava gado com o Pará, Bahia, Maranhão, Ceará. Como o professor Odilon Nunes diz, o Piauí era uma zona de transição. Quando Oeiras foi fundada (primeira capital do Piauí), uma das estratégias de Portugal era ter uma cidade no centro do Norte e Nordeste. Então nunca houve “isolamento” do Piauí, mas há o desconhecimento do Piauí. Não há quem fale no estado, os documentos do Piauí não são lidos.  E o ensino no Brasil tem muitos defeitos. Um deles é que não se ensina geografia e história do Brasil. O Piauí, junto com outros lugares, é pouco estudado na historiografia brasileira, que  estuda o Rio e São Paulo como se fosse a história do Brasil! Aí entra um pouco de Pernambuco, Bahia e outros que foram importantes desde a colonização. Mas o resto fica à margem.

Paulo José Cunha – Laurentino Gomes e seus livros (1808, 1822 e 1889) – especialmente os dois últimos- dedicam capítulos e trechos a acontecimentos e personagens do Piauí que são solenemente ignorados dentro dos círculos eruditos, na academia e compêndios escolares do ensino médio. Afinal, o que está havendo? Existiria uma espécie de “status diferenciado” dos acontecimentos históricos, dependendo do lugar onde ocorreram?

CD – Uma coisa puxa a outra: como há poucos estudos, poucas pesquisas sobre o Piauí, poucas fontes, então o Piauí vai ficando de fora da historiografia. Temos hoje muita dificuldade também para publicar e divulgar o que publicamos. No começo do século XX já tinha alguns livros que abordavam a história do Piauí. Monsenhor Chaves, Abdias Neves, Odilon Nunes, produziram estudos significativos. Nos anos 70 houve uma política editorial sistemática, no Governo Alberto Silva, e foram publicados muitos livros. Foi quando a história do Piauí começou a sair do ostracismo. Não acho que há um simples descaso ou seja algo proposital. Acho que as nossas pesquisas são muito reduzidas. Eu não li os livros do Laurentino, que eu acho que é muito mais uma literatura para ganhar dinheiro do que uma história baseada na metodologia científica. Ele não é um pesquisador, um historiador. É um jornalista. Então o que ele conta não é história, é crônica, relato, memória – que tem o seu valor, mas não é história. Ele não leu minha tese de doutorado, eu não estou entre as fontes dele, e sinceramente acho isso uma falha. Não que o meu ponto de vista esteja certo, mas é uma pesquisa relevante, profunda.

Paulo José Cunha – A Batalha do Jenipapo, em Campo Maior, que o próprio Laurentino destaca, é um dos acontecimentos referenciais na historiografia nacional. Afinal, foi o fato que consolidou a independência, e com derramamento de sangue. Numa longa entrevista gravada em vídeo que ainda permanece inédita, com Monsenhor Chaves, ele me dizia que “aquele grito” (o do Ipiranga) não passava de um grito. Enquanto a morte dos heróis do Jenipapo era a prova (dada com a vida dos nossos matutinhos) de que a independência não foi uma concessão da coroa portuguesa ao seu príncipe, mas uma conquista. Como você vê a história da Batalha do Jenipapo?

CD – Os estudos tradicionais sobre a Batalha do Jenipapo forjaram uma abordagem histórica fundamentada na história positivista, que acredita que os documentos falam por si. O pesquisador não analisa, não questiona, não interroga o documento. Apenas copia. Criou-se uma mítica em torno da história da independência do Piauí, na verdade, porque esse é o nosso assunto mais estudado. Qual o outro assunto que é estudado na história do Piauí? Não existe! (fala com ênfase). Os pesquisadores piauienses, os estudantes de história, não se interessam em estudar a história do Piauí. E como a Batalha do Jenipapo foi realmente um acontecimento sangrento, com mortes e com um desfecho que foi coroado pela expulsão do comandante das forças portuguesas – que ganhou a batalha campal, mas perdeu a guerra, porque foi fustigado pelas forças do exército independente  e fugiu para Caxias, no Maranhão – então ela ganhou uma conotação ufanística, apologética. É um dos poucos fatos da história do Piauí que o piauiense conhece – e visto dessa maneira. Mas a Batalha do Jenipapo não foi a única. Houve numerosas lutas – em Piracuruca, Valença, São Gonçalo, Parnaguá, Parnaíba, Barras, Pedro II, Castelo – as vilas do Piauí tiveram que lutar, uma a uma, pra fazer a mesma coisa que fizeram com Fidié: expulsar os portugueses do Piauí. E conseguiram, né? Eu até me pergunto: você conhece algum português no Piauí? (risos). Não existe um estudo sobre isso, né? Que famílias portuguesas estavam aqui e foram expulsas? Como não existem estudos, a Batalha do Jenipapo termina ganhando esse destaque todo. Eu questiono manifestações como “berço da independência” ou “berço de heróis”.  A gente tem que valorizar a história entendendo como ela é, e não por ufanismo ou fazendo apologias. Isso não é história. É romance, é literatura.

André – Em muitos fatos históricos, como a própria Batalha do Jenipapo, os estudos nos ensinam o nome de Fidié – comandante português, mas não se fala no nome de nenhum piauiense. Porque isso acontece?

 

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(Foto: Mauricio Pokemon)

CD – Porque a história foi contada sob o ponto de vista dos grandes, não sob o ponto de vista da massa anônima, do vaqueiro, do artesão, do lavrador. Foi contada a partir da liderança dos oficiais militares, dos ricos fazendeiros. Só a partir dos anos 70 é que as historiografias inglesa e francesa começam a apontar para a multidão sem rosto e a buscar esses agentes históricos. Então eles não têm nome, é uma massa anônima. Mas o Piauí teve muitos líderes populares. O lavrador Alecrim, por exemplo, liderou mais de 500 homens quando teve o cerco à cidade de Caxias e Fidié se rendeu. Hoje o morro do Alecrim, em Caxias, faz homenagem a ele. A maioria desses agentes ficou conhecida por apelidos. Então a história, tradicionalmente, foi contada de cima pra baixo. Por isso o monumento do Jenipapo – ao recuperar armas, roupas e fazer um cemitério para homenagear a massa anônima – tem importância.

André – Como conhecermos a história contada de “cima para baixo” afeta na construção de nossa identidade?

CD – Por sermos um povo que não conhece a própria história, a cultura, o nosso patrimônio, terminamos copiando, imitando, valorizando o que é de fora. Isso é típico de uma sociedade que não conhece a si mesma. Por exemplo, nós temos uma longa tradição histórica indígena que ninguém conhece. Quando eu digo que estudo o índio na formação do povo piauiense, tem gente que diz: “mas como, se no Piauí não teve índio?”. Então, esse desconhecimento sobre quem somos nós causa problemas na mentalidade, comportamentos, atitudes e na própria formação da identidade. Porque identidade não é uma entidade solta e formada por si. Ela é difusa, constituída de vários aspectos. Uma coisa que me preocupa é que somos um povo extremamente mal educado, sabia? Depois eu notei, quando eu saí do Piauí, que eu não era tão bem educada (risos). Eu tinha a educação formal: da escola, da família, sempre gostei de estudar, mas eu falo do dia a dia, entende?  As pessoas não dizem por favor, obrigada, com licença, desculpe. Não cumprimentam, não dão a vez. Falta-nos gentileza.

Samária – E o que tem no Piauí ou no piauiense que sejam coisas para se orgulhar?

CD – Tem curiosidades que fazem do Piauí um estado diferente. Foi um dos últimos a serem colonizados no Brasil, mas o primeiro a acabar com sua população nativa. É um dos mais pobres do Brasil, mas onde estão os vestígios de povoamento mais antigos da América. Tem três parques nacionais e vestígios arqueológicos que se espalham pelo Piauí inteiro. Tem o maior acervo em pinturas rupestres no mundo. Tem o único delta das Américas. Todo o Nordeste tem litoral, mas o nosso é o menor, cheio de dunas, carnaúba, coqueiral, babaçu, enseadas, mangue. É o único lugar no mundo, fora a Austrália, onde tem opala. E ainda tem Barra Grande, que é essa pérola. Então tem muita coisa. Falta um trabalho que dê conta desse rico patrimônio que nós temos. Mas a politicagem atrapalha muito.

Samária – No seu livro Que história é essa, você afirma que o brasileiro acredita no político bem nascido e rico. Nós continuamos assim?

CD – A história mostra que o brasileiro, como um todo, e o piauiense, em particular, tem a característica de ser capaz de lutar, se manifestar, reivindicar, mas não é capaz, ele próprio, de se considerar pronto para governar, liderar, coordenar. Sempre é o outro: o bem nascido, o rico – esse é que tem direito de ocupar um cargo. Já existe uma mudança nesse paradigma: o Lula se tornou presidente, mas ele é exceção, não regra. E mesmo assim, quando Lula chegou ao poder não conduziu suas ações exatamente de acordo com a liderança que ele representava. Porque quando essas lideranças que saem das camadas populares chegam ao poder, elas muitas vezes se voltam contra as classes populares. Isso é intrínseco ao poder. Você não consegue realizar o que de fato o levou a ser eleito. O poder inverte essa postura. Qual a revolução no mundo que não se voltou contra o povo quando vencedora? A única foi Cuba. Mas é trucidada no mundo inteiro! (fala com ênfase). Eu acho que o piauiense continua a acreditar no rico, no bem vestido, para governar, comandar.

Wellington – O golpe militar de 1964 completou 50 anos. Você considera que ele teve algum saldo positivo?

CD – Não tem lado bom na ditadura. Ela se deu com total coerção das liberdades, torturas, exílios. Houve um avanço em termos desenvolvimentistas, mas um declínio total na educação. Então há um prejuízo histórico difícil de recuperar. Mesmo com toda repressão, violência, perseguições, a ditadura não foi capaz de calar todo mundo. Porque nos momentos de muita violência pode ocorrer um florescimento das artes em algumas áreas, especialmente na música, literatura, teatro. Isso acontece porque há uma busca para se expressar. Eu vivi um pouco o final da ditadura. No Piauí, o cinema Super8 se torna muito representativo do início dos anos 70, quando a ditadura estava no auge.

Luana – Sobre as produções em Super8, a praia de vocês era mesmo cinema ou vocês buscavam nessa linguagem uma forma de se expressar?

CD – Em plena ditadura militar, havia uma censura em todos os níveis. Não se podia publicar, gravar, manifestar. Então surge uma via de expressão que é o Super8, que não fazia parte de nenhuma política e era independente. É como se fossem algumas possibilidades da internet, hoje. O Super8 chega ao Piauí através do Doutor Antônio Noronha, que havia estudado medicina em Recife, e do Torquato Neto. Eles eram amigos, queriam fazer cinema, se juntaram a um grupo e foram filmar. Torquato vivia no Rio e vinha ao Piauí de férias, para “se abastecer”, como ele dizia. Então, quando ele chegou ao Piauí, com essa ideia na cabeça e uma câmera na mão, inspirado no Cinema Novo e no Cinema Marginal, encontrou Noronha com a mesma ideia. Eu conhecia o Noronha da faculdade e ele me convidou a participar de um filme. Mas esses filmes não tinham pretensão nenhuma, a não ser mostrar para as pessoas que existia gente aqui que podia produzir. Essa turma de piauienses formava um grupo que produzia e consumia cultura. E não era só cinema. Era poesia, literatura, jornalismo, música.

Paulo José Cunha – Quando você fez “Adão e Eva: do Paraíso ao Consumo”, com Torquato Neto, ele já era o poeta do movimento tropicalista. Como foi a experiência de contracenar com Torquato num filme que se tornou mitológico – porque desapareceu e dele só restaram algumas fotos de still?

CD –  Quando a gente se conheceu foi amor à primeira vista. Não amor de homem e mulher, mas um encontro de almas, sentimentos. Eu era uma jovenzinha, tinha chegado de São Raimundo Nonato, cheia de sonhos, e me chamam para ser atriz, fazer um filme com Torquato! O Adão e Eva teve uma repercussão grande na cidade. Noronha era professor da faculdade de Medicina e fez sessões no Centro de Ciências da Saúde, que ficava na avenida Frei Serafim, e também na casa dele. Era tudo meio escondido. Quando Torquato me conheceu, disse que tinha encontrado a atriz para os filmes dele. Lembro disso até hoje: a gente abraçado, encostado no carro, ele falando e eu ouvindo, abestadinha (arrasta a última palavra). Mas ao mesmo tempo eu sabia que tinha que estudar muito, me formar, queria ir para o Rio. O suicídio dele foi uma coisa marcante na vida de todos nós. Torquato deixou uma herança, mas interrompeu a trajetória. Noronha não gosta de pensar assim. Ele acha que a trajetória da vida era essa mesma. Mas foram frustradas expectativas que a gente projetou. Torquato foi muito importante na formação da gente porque ele já era o Torquato Neto, uma referência do tropicalismo, uma mostra do que se pode fazer. Também era muito angustiado, triste, revoltado, sensível.

André – Com o distanciamento no tempo, como você vê hoje essas produções em Super8 que fizeram?

CD – Era uma produção muito simples. Tudo era gravado direto, não havia cortes, não havia repetição. Adão e Eva são 12 minutos sem edição, sem áudio. Era o que havia de mais avançado na época, em recursos técnicos e também em termos de criação, que era vanguarda. Mas, claro, havia todo um amadorismo na produção. A gente andava num fusca do Noronha, onde cabia todo mundo. Os roteiros eram criados na hora: uma câmera na mão e uma ideia na cabeça mesmo! Em Adão e Eva havia toda uma crítica à sociedade de consumo, que era um dos alvos preferidos da “juventude transviada”. O capitalismo tava avançando no Brasil, o plástico, o sintético, a seda que não é mais seda – é lycra, há toda uma entrada de novos padrões que exigiam o consumo.  O filme denunciava que a sociedade de consumo era autodestrutiva.

 

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(Foto: Mauricio Pokemon)


Wellington – A geração dos anos 60, 70, encarava as drogas com naturalidade e, de certa maneira, como um ato de rebeldia.  A relação dos jovens com as drogas mudou? E qual a sua posição sobre descriminalização da maconha?

CD – Eu digo que a gente fumava escondido dos pais e agora fuma escondido dos filhos (risos). Houve toda uma transformação da droga num produto de tráfico, violência e destruição das pessoas. Eu, particularmente, não bebo. Meus amigos nunca foram de usar drogas. Nosso lazer era teatro, cinema, ir pras coroas do rio Poti ou Parnaíba, dar risada e conversar. Mas na geração dos anos 70, no mundo inteiro, houve uma propagação do LSD, alucinógenos, heroína, cocaína. A maconha, por ser uma das drogas mais antigas do mundo, é muito disseminada. Ela não causa prejuízos físicos nem mentais. Pior é o álcool, e esse é liberado. Sou a favor da legalização das drogas porque  acho que, assim, haverá um controle do comércio, que hoje tá na mão de traficantes. Mas o estado precisa saber como vai comercializar esse produto, que vai precisar ser tratado como qualquer outro produto, com um planejamento para circulação. Também tem que ter centros de tratamento, apoio. Evita-se legalizar por isso: porque o estado não tem esse aparato. E não é porque libera que vai todo mundo consumir, né? Todo mundo consome álcool?

Samária – Você não acha que há uma espécie de saudosismo com os anos 60 e 70?

CD – Os anos 60 e 70 nunca saíram de moda. É onde está o gene revolucionário da cultura. Não acho saudosismo, acho um enraizamento de uma cultura que foi baseada na contracultura e que sedimentou hábitos e atitudes, como a relação da gente com música, teatro, o rompimento de valores, o questionamento ao autoritarismo, o enfrentamento, a rebeldia. Acho que isso tudo ainda tá dentro da gente, embora a geração atual tenha outros parâmetros. A revolução tecnológica ajudou a tornar as pessoas mais independentes, mas também mais egoístas, individualistas. Agora, cada geração é uma geração, não tem uma melhor do que a outra. Mas os anos 60, 70 ainda influenciam: a moda, o cinema, a literatura, comportamentos. Do ponto de vista cultural acho que o mundo hoje tá meio voltado para a informática, cibernética e valorização da tecnologia. Estamos vivendo um momento revolucionário. No final do século 19 para início do século 20 houve o que Eric Hobsbawm chamou de “uma onda revolucionária que percorreu o mundo”, acelerada pela revolução industrial. Agora estamos vivendo outra onda revolucionária, ligada à informática e à revolução cultural. Eu sou da geração do ferro a brasa, fogão a lenha, geladeira a querosene, luz por um gerador a óleo, ruas de areia – isso era a nossa tecnologia! A gente passou muito rápido dos anos 60 pra cá, tu não acha? Sair do ferro a brasa para o Whatsapp?! (risos).

Wellington – Nesse mundo em transformação, as nossas universidades públicas estão conseguindo cumprir o tripé ensino, pesquisa e extensão?

CD – A universidade valoriza o ensino, em detrimento da pesquisa e extensão. O professor é muito sobrecarregado com carga horária, tem pouco tempo pra pesquisar e pra fazer  trabalho de extensão. A pesquisa é muito sacrificada. Ela é feita no mestrado e no doutorado. Poucos doutores na universidade são pesquisadores do CNPq. E há alguns critérios que dificultam, como a valorização do pesquisador que publica. Como você vai ser pesquisador se não publica? E como publicar? Então há uma acomodação na área do ensino e fica essa reprodução do conhecimento, em vez de se estar criando novos conhecimentos, através da pesquisa e extensão.

André – E a sua relação de um modo geral com a universidade, como está hoje? Como a universidade se relaciona com o professor aposentado?

CD –  Na França o professor que se aposenta é melhor tratado. Ele continua com infraestrutura da instituição, com sala equipada, participando de conferências, orientando, coordenando projetos, organizando livros, eventos. No Brasil, algumas poucas universidades têm essa atenção. Na maioria das instituições ele é simplesmente jogado fora, como um traste, que não serve mais para nada. Não há um aproveitamento da experiência desse professor. Eu me sinto assim: desprezada. Não quero fazer papel de coitadinha, não falo de mim em específico, nem de uma universidade. Falo de um recurso humano que, no Piauí, tem mestrado, doutorado, livros publicados, conhece a Europa, Estados Unidos, conhece bibliotecas, arquivos e museus do mundo inteiro, trabalhou 36 anos, deu aula na Federal do Rio, Federal Fluminense, Federal do Piauí, e parece não ter valor! Uma sociedade que despreza esse tipo de recurso humano é uma sociedade que tá equivocada.

Luana – E como você se define ou se localiza como mulher na sociedade contemporânea – estudada, viajada e solteira?

CD – Eu já enfrentei muitos preconceitos. Tive que brigar pra ser aceita do jeito que escolhi ser: sem marido e sem filhos. Hoje existe uma nova mulher na sociedade mundial: que escolheu ser solteira, dona da vida dela, não quer casar nem ter filhos. Não sou contra o casamento, embora ache as relações amorosas dificílimas. Eu fui formada para ter uma vida livre e independente. Era o que eu sonhava em São Raimundo Nonato. Mas por muito tempo isso foi um problema. Porque eu não estava dentro do padrão. A atitude de ser livre, independente, ainda é um pouco questionada, porque o fato de escolher ser solteira e sem filhos estigmatiza. Felizmente hoje essa minha postura não é mais solitária. E não é fácil assumir a vida sozinha, ter que decidir tudo. Mas eu experimento uma sensação de liberdade que aprecio muito.

Samária – Para você o que é a felicidade, hoje?

CD – Hoje, quando nós chegamos na praia e eu me deitei nessa redinha, estiquei o corpo e senti o vento em cima de mim, eu pensei: eu sou feliz. Acho que felicidade é você se colocar no momento em que você está e se sentir bem. Quando eu chego aqui é como se não existisse problema, porque eu chego e mudo o foco. Aqui você não precisa de muito pra ser feliz (Pausa). É mais ou menos por aí, entendeu? Tu acha que tá bem explicado? (risos).

 

Toco fogo e vou ao cinema

Quando veio passar uma temporada em Teresina, em 1972, Torquato Neto encontrou aqui a sua turma e, em Claudete, a sua atriz. Com ela fez os filmes “Adão e Eva: do Paraíso ao consumo” e “O Terror da Vermelha”. Esse segundo filme continua a existir em cópias espalhadas pela cidade. Já Adão e Eva existe apenas em fotografias, registradas por Antônio Noronha e Arnaldo Albuquerque, e na memória dos que produziram o filme ou assistiram suas exibições quase clandestinas.

Conta-se que o filme teria desaparecido quando uma amiga de Torquato se oferece, ainda em 1972, para levar a fita a Londres, de navio, onde seria providenciada uma sonoplastia mais adequada. O sumiço só adicionou mais mistério e paixão ao filme e à sua história. Adão e Eva tinha 12 minutos de duração, foi gravado sem cortes e sem áudio. Nas exibições, o filme era acompanhado pelas músicas do disco The Dark Side of the Moon, do Pink Floyd.

No filme, o casal Adão e Eva deixa o paraíso e cai nas tentações da sociedade de consumo, mas termina por se autodestruir. Adão é Torquato e Eva é o primeiro papel de atriz de Claudete Dias. “Ela era tão tímida que, numa cena onde se molha no rio, teve que usar uma roupa por baixo”, relembra Noronha.

Um ano antes da gravação, Torquato publicou em sua coluna no Jornal Última Hora o artigo “Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema”, onde defende um cinema em liberdade, que busque destruir a linguagem e explodir com ela. Adão e Eva tocou fogo em uma geração. Na sua última cena, um cartaz avisa: “Toda sociedade tem o fim que merece”. Em tom mais singelo, Torquato escreveu: “era um filme sobre areia, palmeiras de babaçu e céu e água e muito longe, depois, um caso de amor”.

*Para saber mais, procure o artigo: “Travessuras em superoito milímetros: o cinema em liberdade de Torquato Neto”, Edwar Castelo Branco, 2011.

 

(Publicada na edição #14 – maio/junho de 2014)