Victória Holanda

Fica, vai ter post!

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Eu, coração exilado

Hoje fui parar em uma playlist aleatória sugerida pelo Spotify e a primeira música que me deparei foi Cajuína. Que piada, Caetano: “Existirmos: a que será que se destina?”.

Peito de exilado é assim. Por um momento a gente pensa que foge do mormaço, da cerca de muro baixo, de olhar o outro e se reconhecer até demais, mas bate a testa na Torre de Babel da língua, da distância, do mar que é gelado, da saudade que não resolve com chamada de Whats App, do quarto de 10 m² que não cabe muitos sonhos.

À distância de um oceano, assistimos com culpa o colapso de um sistema em ruínas, reclamamos em uníssono os lamentos em tweets, sabemos de mais alguém que fez as malas e partiu, somamos faltas às listas de casamentos, festas de aniversários, formaturas e presenças na vida de quem importa.

Em meio à poeira, esforço de chegar, esforço de salvar, esforço de resistir, esforço de alcançar, esforço de aceitar, esforço de ficar. A alma é imigrante, mas a carne é filho caçula que foge de casa e não vê a hora de voltar. Na companhia de alguma lágrima mais teimosa, a frequência bate em xote lento, os passos seguem incertos e o coração remendado, palpitando da coragem que resta.

O dia que eu fui embora

Há três meses peguei um voo para o outro lado do oceano com uma mala de 18kg, algum dinheiro e nenhuma certeza. Em duas semanas, larguei dois empregos, vendi carro, fiz duas viagens de 600 km e me despedi das pessoas queridas com um até logo. Em cada ida ao cartório nos últimos cinco minutos antes de fechar, cada providência trabalhista de última hora e em cada mínima resolução dessa viagem eu ouvia uma voz que dizia: “vem por aqui”.

É engraçado como, bem lá no fundo, eu só sabia. Há meses sonhei que me mudava para Lisboa: “olha mãe, é aqui”, dizia ao levá-la para conhecer o apartamento que eu moraria. Acordei e pensei: “what the fuck?”. Naquela noite, alguma coisa foi escrita no céu. Depois de morar em um hostel durante um mês e visitar pelo menos cinco quartos para alugar, eis que vim parar no mesmo quarto que aparecia no sonho – exatamente o mesmo. Não sem antes quase ir parar em outro e, ao partir para as combinações financeiras, a comunicação desandar repentinamente. Era essa voz me estapeando: “não é aqui que você vai ficar!”.

Você deve estar lendo isso e achando que sou louca ou esquizofrênica. Talvez, não garanto nada. Há alguns anos entrevistava uma coreógrafa que dizia: “tem que escutar o passarinho no ombro porque se você não tem esse pássaro que canta no seu ombro, você não tem intuição e, sem intuição, você não vai vencer na vida”.

Tenho escutado e sigo por aí me perdendo entre as ruas ladeira acima, trocando as linhas do metrô, fazendo um pedido no menu esperando por um bife com ovo frito e me aparece um fígado de porco com batata cozida. É como quando eu era criança e jogava videogame: às vezes ganhava, às vezes perdia e seguia fingindo que entendia as regras.

Aqui descobri que criança é “miúdo”; que “resultar”, na verdade significa “funcionar”; que a água não é gelada, é “fresca”; que durex não é fita adesiva, é camisinha; que “fixe” ou “giro” são os equivalentes para “legal” e “massa”; que cueca não é cueca, é calcinha e, que basicamente as expressões brasileiras com conotação sexual ou uso pejorativo são totalmente permitidas em contextos sociais (pica é injeção; ter gozo não é atingir o orgasmo, é sentir prazer ao executar alguma tarefa que pode inclusive ser acadêmica, pasme!).

É como quando você visita um parente ou amigo de que gosta muito: te servem água e sobremesa, mas você nunca pode abrir a geladeira sem permissão ou chegar sem telefonar. É no fim do dia ter um lugar para voltar, mas não se sentir completamente em casa. É nunca entender direito o que seus professores estão realmente pedindo. É sentir algum conforto com aquele feijão tropeiro com salsicha que você achou milagrosamente em um bar. É ser tratada muito bem, mas sempre precisar explicar as piadas que conta. E tá tudo bem.

É tempo de perdoar. Os outros e, sobretudo, a si mesmo. Se perdoar por não ver seu sobrinho crescer, se perdoar por não acompanhar a recuperação médica do seu pai, se perdoar por dar o melhor de si e não achar que é suficiente, se perdoar por ter magoado as pessoas que você ama. É aceitar que mesmo sem casa, você pode ser lar. É ser trem e se deixar descarrilhar. É ter medo de pular, mas se jogar e voar.

Agora um sonzinho bom.

 

Ohad Naharin ou It’s a long way

Contém spoilers

Eram 18h30 do último feriado quando vi uma postagem nas redes sociais anunciando a estreia de “Gaga – o amor pela dança”, documentário de Tomer Heymann sobre o coreógrafo israelense Ohad Naharin. Eu tinha 50 minutos para chegar ao cinema, já que o filme ficaria em cartaz em Teresina somente uma semana e apenas nas sessões de 19h20. Pulei da cama e dirigi até o cinema. Nas poltronas: 6 pessoas contando comigo.

Ohad Naharin é daqueles artistas que nos faz lembrar porquê que a gente dança. Um personagem: contatos, no mínimo, inusitados com Martha Graham e Maurice Béjart; caso amoroso com Mari Kajwara, que largou seu posto de primeira-bailarina à frente dos trabalhos do coreógrafo americano Alvin Ailey para casar com um desconhecido que tentava a vida em Nova York; aulas de balé ao lado de Rudolf Nureyev nas quais Naharin caiu de paraquedas e polêmicas à frente da Batsheva Dance Company, Ohad Naharin é soco no estômago, acalento no coração, é abraço na alma, é uma luzinha vermelha piscando.

É lembrar que dançar é entrega de si, é receber a entrega do outro, é resistir a essa entrega, é gostar de se entregar. É derreter na pele um calor, uma chama acesa, uma palpitação. É vontade de rasgar o peito todinho, de se esfregar no chão, de flutuar no ar. É suspeitar que um contato horizontal, pode ser mesmo muito vertical. É necessidade de extravasar e, mesmo assim, investigar seu íntimo lá no fundo pequeno sozinho. É chorar e sorrir com a certeza que fez a escolha certa.

 

É Caetano, It’s a long way. It’s a long, long, long, long way.

 

“E se não tivesse o amor

E se não tivesse essa dor

E se não tivesse o sofrer

E se não tivesse o chorar…”

 

(…) Nós não íamos dançar.

Nos sabermos sós sem estarmos sós

5 anos – quando eu era criança, frequentei uma creche a dois quarteirões de casa por alguns meses. Não queria que ninguém me levasse pelo braço: sabia que eu mesma poderia trilhar aquela jornada, carregar meus próprios livrinhos e minha lancheira do Batman herdada do meu irmão. A Edinês, funcionária lá de casa, ficava me observando do portão até ter certeza que eu tinha entrado e que não seria raptada. Então, todas as manhãs, eu seguia sem olhar para trás.

12 anos – eu era vizinha de dois colegas da minha turma na escola e, às vezes, pegava carona. Uma tarde em que teria atividade extra, minha mãe me mandou ir com eles. Por algum motivo entre desobedecer a uma ordem e se sentir independente, resolvi que iria de ônibus, sozinha. Peguei o caminho oposto e, antes que eu chegasse, ela me viu da janela, me deu um grito e me mandou subir. Eu ainda a desobedeceria muitas vezes e, na maior parte delas, eu estaria errada.

18 anos – dos quatro vestibulares que fiz nessa época, um deles era para o Rio de Janeiro. Decidi ficar. Não foi a primeira, mas com certeza não foi a última vez que decidi ficar ao invés de ir. Desde então e, por alguma razão que não a reconheço, tenho decidido ficar mais. Será que a coragem de estar sozinha foi embora sem mim?

24 anos – Estar sozinha deixou de ser escolha e virou condição. Se eu quiser pegar a estrada ou um avião, ninguém vai me gritar do 4º andar e me mandar voltar. Se eu quiser fazer uma tatuagem, está tudo bem, contanto que eu pague a internet, faça supermercado e bote gasolina. Se eu quiser jantar cerveja, quem se importa? O fato é que nunca foi tão bom, tão difícil e tão solitário estar só.

Eólico, sopro e tornado

Era uma noite chuvosa de domingo quando fui assistir Eólico no Sobrado. Era também o último dia desta temporada. Lá fora, no bar, alguns amigos compartilhavam conversas e cafés. Lá dentro, algumas outras pessoas se acomodavam nas cadeiras de praia. Ninguém parecia se lembrar da chuva, principalmente os que assistiriam à performance – um projeto independente que propõe criações em dança e é idealizado por Samuel Alvis e Ireno Júnior.

Assisti à versão eólico solo (existe a versão eólico des-dobrado) com Samuel Alvis. Dá pra dizer que Eólico é muita coisa, mas quero dizer apenas que é daqueles trabalhos gostosos de assistir. É daqueles que dá vontade de dançar, daqueles que dá vontade de voar, daqueles que dá vontade de se deixar levar feito pena, daqueles que dá vontade de enfrentar junto, que nem quando a gente está na estrada, viajando de carro, e coloca a mão pra fora pra sentir o peso que o vento tem.

EÓLICO - SAMUEL ALVÍS, foto- Adriano Abreu (1)

Foto: Adriano Abreu

Eólico tem peso. É motor que acelera e desacelera; freia bruscamente, freia lentamente, que repete, que desiste, que persevera, se derrete e se reconstrói – dinâmicas que são de movimento, de dança, de vida. Eólico é também aquele sussurro bom ao pé do ouvido, que dá ventinho na barriga, é variação de Dom Quixote abanando a vontade de fazer, é brisa que refresca a nuca, que faz balançar a saia. É sopro, furacão e tornado. Quantos km/h?

Eólico é que aquilo que tá no corpo porque tá na gente. Tá na gente porque tá no corpo. É sopro que teima, fôlego que acaba, suspiro que se cansa, todos obstinados a transformar, mas se esvaziam. Não sem antes mudar alguns poucos papeizinhos pelo espaço cheio deles: trabalho de formiguinha. São hélices que podem espalhar sonhos e desejos, mas juntas, em movimento e atravessadas colidem, definem pausas, esgotam-se. E depois, começa tudo de novo numa trajetória circular interminável.