A primeira dedução que me surge à mente é que viver é uma emoção infinita. O que não quer dizer muita coisa, eu sei. Tentarei ser mais específico. Penso que, em qualquer lugar, a qualquer tempo, viver me parece experiência radical, um reservatório imensurável de presente. Acho que é o caminho e nós os caminhantes de uma trajetória infindável que começa agora e não termina mais. Uma brecha aberta pela qual a alma respira.

Viver talvez seja estar. E estar é estar com os outros no mundo. A maior dificuldade é que julgamos e organizamos tudo em relação a nós. E as pessoas e seus motivos são irredutivelmente diferentes de nós. Isso gera conflitos e insatisfações. Elas não estão para nos satisfazer ou concordar conosco. Como nós, elas são uma liberdade a se realizar. Pensá-las assim, nos faz percebê-las como um mistério cheio de fecundas possibilidades.

Vivo extremos desde que me conheço por gente. Matei, roubei, fiquei preso quase 32 anos. Estive à deriva, numa errância descontrolada. Conheci pessoas maravilhosas e outras mesquinhas e perigosas. Odiei e fui amado. Encontrei em cada outra pessoa o que me faltou para viver plenamente, mas consciente que o problema era sempre comigo mesmo.

Há poucos anos, estava em uma cela que media 5 por 4 metros; hoje vivo em uma casa com muitos cômodos e cada um deles maior que aquele xadrez. No lançamento do meu segundo livro, “Tesão e Prazer”, fiquei hospedado no Hotel George V, por conta da revista em que tenho uma coluna já vai para 14 anos. O apartamento em que fui colocado sozinho era maior que o pavilhão em que morávamos em mais de 100 presos. O banheiro era bem maior que a cela que habitávamos em 16 pessoas e a hidromassagem era do tamanho do banheiro, lavatório e da ducha, que todos usávamos.

Havia um prazer impossível ali, eu não conseguia aproveitar. Estava só. Não havia com quem dividir todos aqueles prazeres. Tudo era insólido, desamarrado do que fora minha vida. Um passo em falso no inexprimível. A mesa do café da manhã, selfservice, era tão comprida quanto meus olhos alcançavam. Possuía uma tal variedade de alimentos que alimentaria um batalhão. Meia dúzia de espécies de bolos; doces, brioches, queijos e frios fatiados que eu nem imaginava o que fosse. Pães de todo tipo; salgado, doce, preto, branco, pintadinhos, pequenos e grandes. Frutas, então, era tamanha a variedade que perdi a vontade. Quando peguei um pedaço delicioso de bolo e saí comendo, meu advogado, que viera para me levar ao lançamento do livro, chamou minha atenção. Tinha que pegar no prato e comer na mesa. Fazia parte da educação. Quanta frescura, pensei. Perdi a vontade de comer: todo meu desejo era correr daquele logro sedutor.

Dia seguinte, fui ver meus filhos. Na casa vizinha, residia minha comadre, havia batizado meu filho mais novo. Convidou-me para tomar café em sua casa. Eu a conhecia de menina e ela queria me apresentar o marido e os filhos. Havia uma tal alegria em me receber, um brilho de prazer nos olhos dos meninos e um aperto de mão tão sincero do marido que me fez sentir satisfação em viver. Era um momento mágico. Não havia cadeira para sentar. A comadre encheu um copo de vidro de café e me deu um pãozinho francês com fina camada de margarina. Estava dividindo comigo o café e o pão de seus filhos. Nunca mais tive um café da manhã tão delicioso. Sai para comer no quintal, a cozinha era tão pequena que quase não dava para nos mexermos. O céu lavava o ar de azul e eu sentia o esplendor de estar vivendo. Aquele povo sofrido, com dificuldades até para alimentar seus filhos, tornava minha vida grande.

A vertigem de viver é sentida quando nos envolvemos com pessoas de alma simples. O coração submerge, de soterrado, como um pássaro assustado com as penas em desalinho. Não, eu não sabia bem o que fosse viver. Sabia apenas sobreviver. Estou aprendendo agora, em meio a tantos contrastes e extremos, a viver, depois de tantos anos de sobrevivência nos cárceres e mais de década de lutas por viver aqui fora. Tudo me parece um processo dinâmico, relativo à capacidade de cada um de perceber. O que definir hoje como viver, amanhã, com certeza, estará ultrapassado. Acho que toda sabedoria está em viver o melhor que se consegue no momento, já que o conhecimento não perdura. Somente dura o momento de sua ação. Saber o que é viver é, sem dúvida, viver.

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Luiz Mendes

26/01/2016