Numa dessas tardes em que o sol, cansado de pintar os telhados de amarelo, se infiltrava por entre os edifícios, esparramando sua luminosidade pelas calçadas, eu costurava o tempo com assobios ao vento. Subia uma rua do bairro de Pinheiros, ao encontro de dois cineastas que queriam comprar os direitos de filmagens de meu primeiro livro. Estava cheio de grilos quanto ao contrato, mas cheio de esperanças e até feliz.

De repente, não mais que de repente, como diria o poeta, fui parado pelo choque. A vida, sempre atrasada para encontros vazios, chegava atropelando pela violência da grande metrópole. Cheiro de pólvora queimava as narinas adocicadamente. No chão um jovem de cerca de 20 anos, baleado. O sangue escorria por baixo de seu corpo. Policiais o rodeavam de armas embaladas nas mãos, qual fosse possível reação da vítima, talvez já morta.

Pessoas aglomeravam em torno, de olhar ansiosos. Não entendo bem essa necessidade de ver a desgraça alheia. Mas há algo que atrai fortemente e, mesmo eu que critico, sinto esse magnetismo. Em caso de aglomerações, tenho que lutar dentro de mim para não ir olhar o que aconteceu, curioso também. Às vezes cedo, paro, observo e escuto tudo o que se pode saber, como no caso em questão. O comentário é que ali, jazente, estava um bandido. Ocorrera um assalto. A polícia intervira. Tiroteio e aquele jovem ali restava mortalmente ferido. Alguns diziam que deviam matá-lo de uma vez. Ninguém lhe tinha compaixão por estar morrendo ali, jogado a sangrar na calçada.

Fiquei olhando, ouvindo e fui acometido por profunda compaixão. Todos ali me sabiam a vítimas. Vítimas da violência, essa praga a flagelar a humanidade. O jovem que sofria, mesmo ali inconsciente no chão, aguardava o SAMU. Os policiais, em sua triste profissão de proteger, prender, ou matar; salivando, excitados pelo sangue escorrendo ali na rua. O povo, sedento de emoções violentas por conta da rotina esmagadora de suas vidas, olhava de olhos arregalados. Eu continuei ali pregado ao chão, murcho, vazio, sem conseguir me afastar daquela desgraça toda.

Às vezes, a liberdade, após tantos anos na prisão, é o mesmo que uma pessoa que sabe que vai morrer. A vida assume uma gravidade que pulsa envolta em escuro e fumaça. Tudo fica elástico como sustenidos e plástico como bemóis. Duras lembranças de cruéis passados ficam como ventos desorientados a voar borboletas.

Ao tempo em que os nós da ignorância, são aos poucos desatados, o sofrimento humano fica próximo, cada vez mais próximo. As cores, de tão vivas, explodem na cara como relâmpagos e dominam os olhos a ponto de não conseguir fechá-los. Toda palavra trava na garganta. Às vezes, como nesse encontro com a morte na rua, sou apenas um homem que quer chorar, sem explicações.

Sempre desejei viver na ponta da existência. Busquei desenvolver um sentir central das coisas e, nessas ocasiões, ruídos inaudíveis me remetiam ao impensável. Continuei andando, agora mais solidamente, perdendo-me entre vitrines e carros que quase me atropelavam. Como é dolorido tudo isso! Tudo deixa de acontecer lá fora e parece que é dentro de mim que acontece! Sobreviverá o jovem ferido: já não estará morto? A multidão, conseguirá ultrapassar a curiosidade mórbida e chegar à sensibilidade? E eu, quando deixarei de pensar, imaginar e passarei a viver? E, o que isso importa diante daquele corpo estendido no chão?

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Luiz Mendes

22/10/2016.