Luana Sena

Amar e escrever à máquina

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Corre, corre

Quando cheguei a São Paulo, não conseguia respirar. Atribuí a fumaça dos carros, ao tempo sempre seco, a poeira que levanta quando ando, desatenta, dentro de uma construção. Não era nada disso – ou, quem sabe, era, também. Eu, você, e aquelas pessoas que lotam as sessões de ioga, desaprendemos, todos, a respirar.

É deprimente pensar que a pressa do mundo e, dentro dela, nossa particular ganância, fizeram a gente fazer errado a única coisa fundamental para se viver. Respirar, sob o aspecto fisiológico, é apenas um entra e sai de vento por alguns dos sete buracos da nossa cabeça. Tão simples quanto subestimado – talvez porque presumimos saber desde que nascemos. E, no entanto, se tivéssemos a consciência, quando bebês esquisitos expulsos do ventre da mãe, de que a dor de estrear os pulmões zerinhos é muito inferior a não conseguir preenche-los de ar, abriríamos menos o berreiro.

O fato é que com ou sem choro chegamos aqui – e aqui já parece um lugar longe demais para se lembrar um dia de como tudo foi antes. Sinto o tempo passar no cabelo que cresce, na coluna que começa a doer, na figura de meu pai mais magro na fotografia, no infinito da espera dentro de um elevador. Não sou eu que estou envelhecendo, são meus sonhos que correram mais rápido do que sou capaz de alcançar.

Não quero ser alguém que anda veloz e cruza a rua ignorando o sinal fechado, tão absoluto e certo de uma compaixão oposta a rapidez da pressa. Leva tempo para ser humano. Aliás, o meu tempo não é o dos homens. Só o troco por coisas muito preciosas como conversa fiada, dedicatória de livro, disco com faixa arranhada.

“A vida pra você é uma coisa sem sentido?”, perguntaram-me há tantos dias e eu respondo somente agora: muito pelo contrário. Há um profundo sentido para estarmos aqui, às três da tarde, do outro lado do lugar de onde viemos, compartilhando a existência e o café. Você pode me achar maluca e tem até certo interesse pelas coisas que eu digo – boa parte pela estranheza delas – mas seus olhos denunciam certa falta de esforço pra compreendê-las.

Me recuso a naturalizar o corpo embrulhado no chão que, pela sequência de dias, já faz parte da paisagem ordinária e feia. Por trás da manta velha e desbotada – pelo tempo – há alguém tentando se ajustar a nossa lógica cruel e perversa de aceleração – alguém cujo tempo é só uma questão de faz sol ou vamos morrer, na rua, de frio. Tropeço e sinto e julgo aqueles que passam dormentes – sabendo que é só uma questão de tempo para que eu esteja lamentavelmente igual.

Resistir será sempre o mais difícil e a própria história mostra que a teimosia não foi arma capaz de deter a imposição do tempo. Não parece muito inteligente hoje ser alguém que escreve cartas, que espera para ir à banca, na manhã seguinte, ler aquilo que aconteceu ontem – e ontem já é muito longe – na capa dos jornais. Por outro lado, se o que tem a me oferecer como opção esperta é uma corrida maluca, sem fulga para os delírios, sem folga pro desequilíbrio, sem tempo para o café: passo. Sou forte, sou por acaso. E o meu tempo para.

 

Pra que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome

Nem sempre a gente sabe o que está filmando. “Estas são as primeiras imagens que eu filmei”, diz Petra, assim mesmo, em primeira pessoa, já quase na metade do filme. Foi dali, daquelas imagens, ou melhor, da angústia de entender o que elas poderiam dizer, que surgiu a inquietação fundamental para “Democracia em vertigem” – o documentário mais político e sensível dos últimos tempos que você vai ver.

 

Político aqui foge do sentido partidário, embora o filme de Petra Costa, de forma honesta, revele um posicionamento sobre o Game of Thrones que virou o Brasil – todo filme, na verdade, em essência, revela. Pra mim a Petra põe o dedo na ferida de forma corajosa quando se coloca na história como mais do que observadora. Foi Chris Marker, aliás, francês cuja frase ela cita, que lançou a justificativa para cineastas falarem de si mesmo sem remorso: “Ao contrário do que se costuma dizer, usar a primeira pessoa em filmes tende a ser sinal de humildade: a única coisa que tenho a oferecer sou eu mesmo.”

Petra está lá o tempo todo. Desde antes de chegar ao mundo, na verdade – é extremamente lúcida a consciência de que sua história de vida, assim como a história de um país, prescinde sua existência. Antes de Petra vieram seus avós, e depois deles seus pais, e também Pedro Pomar, o amigo da militância, assassinado na ditadura. Seu nome é em homenagem a ele e reconhecer isso no filme é, talvez, a forma que ela encontrou de dizer que sua história política já estava o tempo todo ali.

Pensando agora, é ousado o projeto de Petra. Está cada vez mais raro encontrar gente com pique e vontade de entender a realidade, de expandir a necessidade, se colocando como peça importante da construção de uma verdade – ela tenta isso tudo, abandonando o lugar de isentona que, no geral, cobramos da imprensa, da ciência, do cinema, da história. Spoiler: nunca vai acontecer.

Todo recorte marca uma posição, é uma escolha que se faz – seja estética, temporal ou pretenciosamente, imparcial. “Eu não sei como isso deve ser contado”, assume a diretora-narradora que se dedica por duas horas a interpretar imagens – imagens feitas por ela, imagens feitas pela televisão, imagens feitas pela câmera de um elevador e também por qualquer um de nós no lugar e hora que só fizeram sentido como certas quando analisadas no depois.

Enquanto a crítica resume o filme de Petra pelo seu trunfo de furar bastidores e capturar ângulos inacessíveis de momentos que só mais tarde se configurariam cruciais para o desenho político do país, eu o acho forte e corajoso por suas inquietações, pela franqueza de suas motivações e pela honestidade de suas limitações: a imagem não é um documento inquestionável.

É muito mais o que você diz e faz nos momentos em que não está sendo filmado que me diz quem você é – ou, colocando de outra forma, o modo como você se comporta diante das câmeras que lhe interessam que define o seu caráter. A exemplo, o desdém com o qual Aécio trata Petra em uma das cenas que, provavelmente, julgava off. Aquilo que nós somos quando ninguém está vendo é o que melhor nos define.

 

É assim que a cena de um sindicalista roubando o cigarro da mão de Lula me diz mais sobre ele do que milhões de discursos ou entrevistas. A arara com os terninhos de Dilma passando em silêncio, sendo retirada do Palácio da Alvorada, as metáforas sofríveis usadas pelos deputados (que, impressionantemente, sabiam que estavam sendo gravados) e o close em um cordão de isolamento caído – derrubado por uma direita enfurecida e odiosa, incapaz de respeitar qualquer noção de limite.

Nem sempre a gente sabe o que está filmando. E assim, talvez, se forma a metáfora imagética mais perfeita do filme: a cena em que faxineiras tentam remover toda a sujeira do carpete na casa símbolo de poder no país. Petra então faz a pergunta que polarizou o Brasil desde o impeachment – você esperava? Talvez nem ela soubesse, naquele momento, o que aquela imagem iria representar – talvez a faxineira, que só cumpria timidamente ali a sua função nem soubesse exatamente o que dizer. E foi assim, meio sem jeito e ao mesmo tempo convicta que ela conseguiu resumir o sentimento que unificava, naquele instante, uma nação: “A democracia, eu acho que ela não existe não”.

Pode-se seguir para sempre acusando a esquerda de não fazer autocrítica – mas tirem Petra dessa. Petra usa a história de enriquecimento da própria família para analisar a relação promíscua da política com o dinheiro. Usa aquilo que a gente tem de mais pessoal – nossa história e nossos próprios sentimentos – para tentar narrar da forma menos distópica possível o curso dos acontecimentos políticos desse país. Usa a própria náusea como combustível e a insistência como estratégia para se manter firme e resistindo – não importa o tamanho e a força da vertigem.

 

*Título em referência a música AmarElo, de Emicida, com participação de Majur e Pablo Vittar. (Ouça aqui).

 

É libertador não estar online

 

Impressões de quem, de uma hora para outra, se desconectou:

  1. Você vai perder a hora sem despertador.
  2. Vai se coçar para twittar enquanto espera o metrô.
  3. Caixa eletrônico ainda existe?
  4. Se você foi num rolê e não fez storie, você não foi.
  5. Mapas na estação e placas na rua nunca tiveram tanta razão de existir.
  6. Antes do waze os motoristas costumavam usar um método infalível para acertar endereços: chama-se “perguntar para as pessoas”.
  7. Você vai perguntar, mas as pessoas não sabem o caminho: elas também estão perdidas.
  8. Existe uma ferramenta ótima para trocar mensagens, enviar fotos, textos e arquivos em geral e com plus maravilhosos: não avisa que você visualizou, não tem grupo da família nem ninguém manda áudio. Com vocês, o novo e revolucionário e-mail. Zero defeitos.
  9. É libertador não estar online.
  10. Olhe ao redor. Sim, essa gente toda sempre esteve aí.

na cidade que eu plantei pra mim

pai,

são paulo não é só para os fortes.
ou, talvez, eu tenha me tornado um deles mais rápido do que esperávamos.

tratamento de choque. se não descongelar a carne, não come.
tô almoçando paçoca quase todo dia num dos melhores restaurantes da cidade – e não fui eu que disse, foi o the new york times. sei reconhecer meus privilégios – e o maior deles é ter amigos.

eu fico olhando e desejando que o tempo passe logo para que eu pare de olhar as coisas com deslumbre. é ridículo e sabotador, esse negócio de adestrar o olhar – não seria ele o que me faz diferente? por aqui, de repente, eu só desejo ser igual.

são paulo é como o mundo todo. me encanta a ideia de viver em um lugar onde você pode sair na rua feito baby consuelo e pepeu gomes na disneylândia – ninguém vai reparar. o mesmo, no entanto, ocorre se você por acaso infartar em plena paulista às 3 da tarde.

tudo aqui é superlativo. a distância, o afeto, a poluição. a peleja começa com a inconstância do céu – as pessoas seguem pela rua ignorando a garoa, alheias ao fato de que, da noite para o dia, a temperatura caiu dez graus. e, à menor ameaça de tempo ruim (ou “bonito pra chover”, como a gente diz mais poética e verdadeiramente por aí) os ambulantes brotam feito chuchu na serra: eles têm sombrinha e capa de chuva. não use se não quiser parecer um turista à toa.

meio dia eu só penso em poder parar, mas a cidade não permite, o que é ótimo para indecisos ou pessoas que pensam demais – apenas colabore com o fluxo e siga, sempre deixando a esquerda livre. um sobe e desce atordoante de escadas que faz a gente se sentir um daqueles trabalhadores subterrâneos de Metrópolis, para usar uma metáfora tão assustadora quanto atual.

ora veja você, eu que não caminhava nem até a esquina, em teresina, tô aqui achando que qualquer lugar a 1km é perto.

são paulo é uma babilônia. é absolutamente fácil ser seduzida. tudo é feito para funcionar, e eu só posso achar impressionante como as pessoas abrem espaço, os carros param para quem atravessa, o padeiro vai trabalhar, as pessoas bebem gin e meia noite parece um horário ok para se passear com o cachorro.

essa cidade é um liquidificador. por aqui o relógio dá duas voltas para a frente, o que faz ainda mais apaixonante qualquer pessoa que me dá um minuto de atenção. elas estão sempre sem tempo, irmão, e, ao mesmo tempo, arrumam tempo para tudo. não há fronteiras rígidas entre o que é trabalho e o que é lazer, caiu o muro do público e privado e ficou tênue demais a linha entre o paraíso e o pesadelo. que agonia, eu tô amando.

você tinha que ver a praça da república tomada de gente no carnaval. o theatro municipal, o vale do anhangabaú, o copan, a estação da luz no fim de tarde depois da gal cantando balancê na chuva – a embriaguez é mesmo audaciosa.

há um comum acordo de que é permitido e autorizado você se drogar – todo mundo se droga por aqui, é barato, acessível e pra muita gente necessário. é quase como um mea culpa da cidade, uma permuta: me dê o máximo de você e eu posso lhe oferecer o melhor (ou o pior) de mim. é uma espécie de compreensão coletiva do tá foda viver, mas já que é o jeito, vamos criando mecanismos pra tornar ~suave – e eu odeio essa palavra e a forma como o paulistano a usa para descrever tudo.

todo dia eu lembro de alguma coisa que eu esqueci e que é completamente possível viver sem. sinto muita falta dos meus livros, eles ajudavam a explicar quem eu sou. estou há um mês usando um chinelo tamanho 42 que encontrei pelo ap. as paredes, as plantas, os recados e os quadros denunciam que alguém foi feliz por aqui antes de mim. e isso é um sopro de que tudo é possível, na cidade do imprevisível.

tô esperando o dia em que você vai entrar num avião.
vem, e não esquece de trazer seu violão.

bjs,

lu.

 

Green book – o que eu sou?

 

Antes de mais nada quero deixar claro que se você é uma das pessoas a quem Green book não surpreendeu porque é um filme “previsível”, “mais do mesmo”, pode ficar à vontade e seguir a leitura porque sim, esse texto é para você mesmo.

Eu sou totalmente a favor do cinema claro, didático, acessível – estou cansada do elitismo intelectual disfarçado de profundo conhecimento da indústria cinematográfica. Se há uso de uma fórmula de sucesso pra atrair um grande público, que ótimo. Pode ter certeza que você também está incluído nele, embora tente, com esforço, distinguir-se. Aliás, Green book é exatamente sobre isso.

O que me leva a ideia de construir pontes, não muros: o que este filme faz de forma linda.

Na primeira cena logo somos apresentados a um tipo espertão, segurança de boate acostumado com o excêntrico mundo noturno. São os anos 60 em Nova York, e Tony Lip (Viggo Mortensen) trabalha no Copacabana, quando a casa precisa fechar para reformas e ele se vê tendo que procurar um novo emprego. É indicado para a vaga de motorista de Dr. Shirley (Mahershala Ali), um pianista famoso que sairia em turnê pelo sul dos EUA.

O que esqueceram de avisar a Tony é que Dr. Shirley, contrariando sua expectativa, não é médico. E é negro.

(Nota: estamos em 1962, um ano antes de Martin Luther King fazer aquele discurso histórico em Washington clamando por um país sem divisões raciais).

Essa road trip é basicamente o enredo do filme ganhador do Globo de Ouro na categoria comédia e indicado a cinco Oscar este ano, incluindo o de melhor filme.

A história é real e o filme já estreou entre protestos – um deles diz respeito a distorção dos fatos reais, o protagonismo dado ao personagem do motorista em detrimento do pianista negro e o fato de ser dirigido por Peter Farrelly, um homem branco.

Polêmicas à parte, este filme constrói links importantes para pensarmos o racismo estrutural e nosso comportamento, séculos depois, repetidor de práticas discriminatórias.

Não sei se pelo fato de Pedro Gonzaga ter sido assassinado por um segurança de supermercado nos últimos dias, ou dos casos absurdos de racismo no BBB, ou ainda a comemoração quase discreta do posto que Maju Coutinho, finalmente, ocupou na bancada do Jornal Nacional, Green book encontrou um contexto crucial para reverberar em mim – assisti na sexta, revi no sábado, e ainda hoje tô pensando.

Mais do que repetir aqueles termos que estão ficando “sujos” de tanto que os usamos sem a profundidade que merecem – representatividade, lugar de fala, discriminação, racismo – quero me ater aqui a algo que achei essencial na história de Tony e Shirley. Para seguir com as palavras que usamos levianamente sem o esforço de praticá-las: empatia.

Reparem como Tony é o retrato da arrogância que só a classe do privilégio é capaz de esbanjar. Chega a ser constrangedor a cena do início da viagem, ele explicando coisas à Shirley com tom professoral – Shirley, com dois doutorados nas costas, ouve mais educado do que paciente, é verdade. Quero deixar claro que não estou aqui fazendo uma ode a títulos. Mas é impressionante observar a pedância de alguém que, mesmo diante de uma autoridade no assunto se acha no direito de arrotar conhecimento – e isso se repete algumas vezes, inclusive na cena em que ele supõe que um funcionário, que assiste ao conserto de Shirley a seu lado, não sabe o significado da palavra “virtuoso” – curiosamente o personagem também é negro.

Tony está o tempo todo presumindo coisas. Com o tempo ele vai baixando a bola – o mal do esperto é achar que todo mundo é idiota. O impasse na amizade entre o motorista e o músico está para além da relação inter-racial – passa também por conflitos de poder, o poder de quem está autorizado por uma sociedade a ser o que se é.

Dr. Shirley nos é apresentado como um homem culto, vaidoso, afeito a etiquetas e que frequenta o circuito da alta sociedade americana. Parece solitário e “com a cabeça sempre cheia de coisas, como é comum a um gênio”, assim descreve Tony em uma das cartas que escreve a esposa. É importante detalhar que Tony tem uma mudança radical de impressão sobre o pianista negro após vê-lo tocar pela primeira vez. É aí que percebemos que foi assim, através da arte e do conhecimento que Dr. Shirley conseguiu acessar os espaços que “conquistou”.

Conquistou com muitas, muitas aspas. A turnê que o pianista vai fazer no sul dos EUA é marcada por episódios que ilustram a nós e a Tony Lip o fato óbvio de que o racismo está longe de ser uma questão superada. Mesmo sendo a estrela da noite, mesmo sendo apresentado como convidado de honra, Don Shirley é impedido muitas vezes de jantar nos restaurantes onde apresenta-se. É instalado em despensas, impedido de usar o mesmo banheiro que os convidados brancos ou de provar um terno exposto na vitrine de uma loja.

Quer dizer,

Mesmo tendo dinheiro, status, competência, talento, título, ou o diabo a quatro o pianista negro é sempre humilhado.

Desacreditado.
Desmerecido.
Discriminado.

Em um dos diálogos mais importantes, Tony Lip acusa o patrão de ser fresquinho, de gostar de luxo e estar sempre no seu trono, sem se misturar com as pessoas. Há também o episódio em que Shirley é convidado a usar um banheiro externo de uma mansão chique onde se apresentava.

Ele se recusa e decide voltar ao hotel.

“Esta é a diferença entre nós, eu mijaria no mato de boa”, diz mais ou menos o motorista branco, acusando o pianista de estar sendo preconceituoso – volte essa cena várias vezes para nunca mais permitir que alguém perto de você fale em preconceito reverso, por favor.

É interessante perceber que se Tony tivesse um tiquinho de autocrítica perceberia que o próprio fato dele, um motorista em serviço, está sendo autorizado a falar todos esses absurdos ao patrão já dá indícios de que não, não é só esse simples fato que os distingue. Há uma diferença marcada na pele e sentida todos os dias por Dr. Shirley, e que Tony Lip, do alto do seu privilégio arrogante, sequer se esforça para perceber.

Para mim um dos grandes problemas da atualidade é a perda da sutileza. Por isso acho Green book um filme feliz ao construir pontes – o conceito de diferente é levado para além da questão racial. A história de Green book não é preto no branco, ao contrário: traz as zonas cinzentas, pelas quais sou apaixonada. Só elas são capazes de esboçar um pouco da complexidade humana – ninguém é só um rótulo, uma roupa, um título acadêmico, todo mundo é um híbrido de coisas e contradições e é um erro agruparmos tudo nas caixinhas dos nossos preconceitos.

Dr. Shirley encontra na formação clássica uma maneira de se distinguir. Por isso para ele é tão pesado e forte questões banais para o motorista branco, acostumado a levar as coisas tão a ferro e fogo e resolver tudo sempre a seu jeito – o jeito de quem teve a vida toda o privilégio de ser o que é, enquanto o outro vive a angústia de ser sempre insuficiente. O conflito do pianista é não se sentir pertencente a nenhum dos grupos sociais: é mais culto e rico do que se espera de um negro e menos homem ou branco do que espera de um branco.

E aí, de forma quase previsível, os papéis são trocados quando Dr. Shirley assume o volante para que os dois estejam em casa a tempo da ceia de Natal. De um jeito claro, bem-humorado e até incômodo (o Tony Lip sou eu, pode ser você, mas é com certeza a branquitude), Green book mostra que o primeiro passo na tentativa de nos tornarmos iguais é aceitar e respeitar as nossas diferenças.

 

“Ser genial não é suficiente.
Mudar o coração das pessoas requer coragem”.

 

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