por José Vanderlei Carneiro (Filosofia/UFPI)

Este é um texto já escrito, como tantos outros. O que muda é somente a árvore, a leitura e o leitor. Começo, pois, pedindo desculpa aos senhores, pois com a idade avançada, o velho já não tem mais as condições necessárias de demarcar a fronteira entre a ficção e a realidade. Sua memória se alimenta de seus fragmentos infantis, uma mistura de lucidez e fantasia. Assim como encontrei no livro que “a vida da gente vai em erros, como um relato sem pés nem cabeça, por falta de sisudez e alegria. Vida devia de ser como sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho”. Mas posso lhes assegurar que tudo que contarei, aqui, é verdade.

Não sou o velho profeta do filósofo contemporâneo, pois não vou à igreja e não tenho a lanterna, além de não ser um homem de pronúncia. Fico aqui debaixo do caneleiro escutando estórias e vendo o mundo passar. Este caneleiro é como o sertão do Guimarães, está em todo lugar. Podemos encontrá-lo próximo de tudo que existe: da igreja, do quartel, da universidade, da praça, da farmácia, da feira de roupas e de perfumes, do mercado, da rua asfaltada, da fazenda, do cabaré, do hospital ou do hospício.

Este lugar tem muitas serventias. O senhor que estuda, sabe, as coisas inúteis moram no silêncio de Deus. O caneleiro, este mesmo, serve como sombra para a pessoa fatigada respirar, para o bacana seu carro estacionar, para a moça se maquiar, para o homem almoçar, para a louca delirar, para o estudante se enganar, para o boêmio descansar, para o pássaro cantar, para o justo ordenar e para o guarda dormir. Enfim, como diz Drummond: “eta vida besta!”

Uma vez, estava aqui, como todos os dias úteis e inúteis da semana, no meu lugar de trabalho, com o cajado na mão, chega um doutor e me faz uma pergunta: – Senhor! O senhor acredita que toda palavra proferida é verdade? Respondi: – não sei. Eu não opero por meio da crença, pois já tive acesso a alguma leitura e minha consciência não tem tempo para alienação. Ela se nutre de suspeita. Tenho a desconfiança por princípio. Mas chega meu amigo Zé Grosso, homem que sabe muitas coisas, e diz: – não. Toda palavra dita não é verdade, a verdade está no uso que fazemos dela. E eu, indaguei: – como assim? A verdade para os senhores do saber é objeto de negociação, como as vestes do judeu que foi dividida em pedaços entre os operadores da lei. Fiquei pensando. A pergunta do doutor tem propósito de verdade, mas a minha resposta também. A intervenção do Zé só poderia ser a expressão da pragmática cultural. E, desse modo, então, o caneleiro se torna uma metáfora das nossas narrativas cotidianas.

Falando nisso, estamos vivendo tempos estranhos. Escutei aqui o homem culto comungando da mesma opinião do iletrado. Deve existir uma escola com o poder de formar homens e mulheres com leituras comuns sobre acontecimentos comuns. O caneleiro é, pois, o lugar da catarse moral, pois há um vazio que se alastra sobre vários problemas da convivência humana: justiça, economia, política, gênero, configuração social e educação, ou seja, tudo tem a mesma semelhança e intensidade, uma estilizada banalidade do bem coletivo.  São todos justos, honestos e verdadeiros com eles mesmos. Ou como dizia uma amiga mineira: “cada qual com seu cada qual”. Pois orientam suas obrigações e deveres públicos em torno do filho, da sogra, da amante, da mulher, do pai, do neto, da igreja, do bairrismo e dos amigos. Todos, menos eu, porque sou estrangeiro e velho.

Vocês leitores já devem estar concluindo, que este texto, de fato, deve ter sido escrito por um velho, por tornar o caneleiro numa espécie de pharmakon filosófico, descrevendo doenças da alma como se fosse o cotidiano da vida; receitando veneno para curar o ódio, pois quanto mais se aproxima da morte, mais necessitamos de amor. E disso sentimos falta, mas é falta que alimenta o desejo de viver.  Adélia Prado meditava na sua tarefa de provocadora do saber: “não quero a faca nem o queijo quero a fome. Afinar o espírito é, em última instância, ouvir os gemidos do mundo e produzir fome de conhecimento.  Portanto, continuo minha sina de escutador, com o cajado na mão, expondo como justeza da memória a infelicidade e como memória feliz o esquecimento. Então, e a Palavra? Continua.