texto de José Elielton de Sousa

(Filosofia/UFPI)

 

Há muitas narrativas sobre como nós, os piauienses, nos tornamos o que somos. Uma delas remete a um povo primitivo e selvagem que foi “descoberto” pelos europeus “civilizados”, graças aos quais passamos a fazer parte da história e da cultura humana – leia-se, do colonizador! E mais interessante do que isso é o fato de que a primeira “instituição” formal dessa “cultura civilizada” a ser instalada em nosso território foi uma fazenda de gado. Isso mesmo que você leu! Não foi um quartel, uma igreja ou uma escola, mas uma fazenda de gado – a Fazendo Cabrobó, que deu origem ao núcleo populacional da Vila da Mocha, primeira capital do Piauí, hoje cidade de Oeiras.

A fazenda – o lugar, os objetos e riquezas, o poder – é uma concessão pública para fins privados, governada por um donatário vitalício, que a conduz “com rédeas curtas”, numa relação de assenhoramento através da força, que de tão brutal, muitas vezes a diferença entre pessoas e animais desaparece. É quando o chicote domestica o animal humano, o cabresto e as rédeas do seu senhor o disciplinam e a morte matada está sempre próxima. E isso obviamente não mudará na casa-grande e muito menos no armazém.

E é justamente com base nessa lógica da criação de bovinos que, em grande medida, se organiza e se consolida as instituições sociais piauienses, suas relações de poder e até mesmo nossa cidadania. Essa colonização explícita dos corpos, seu disciplinamento, torna-os meros animais de rebanho mansos e servis, presas fáceis para aqueles que sempre nos expropriaram e violentaram. Acostumados a empunhar o chicote, o coronelado transforma privilégio em direito, resistência em crime e dignidade em mordomia. Daí nosso provincianismo, nosso saudosismo de uma época que nunca nos pertenceu, nossa cidadania quase sempre passiva e acanhada, muitas vezes complacente com essa lógica de rebanho.

Mas nem todas as possibilidades estão esgotadas nessa narrativa. É preciso aprofundá-la para superá-la, para vislumbrar outras redescrições. Uma fazenda não se reduz ao seu dono, por exemplo. Muito pelo contrário, ele é o menos necessário dos seus elementos constituintes. Sua materialidade é propriamente o gado, a rês, expressão bruta de força, beleza e resistência. Bicho brabo, traz no corpo sua potencialidade, instinto que não se deixa domesticar e mesmo quando abatido, cai berrando. Quando não, se encanta, vira lenda, festividade, folclore e subverte a ordem das coisas – nem todo gado, apesar de certa tendência gregária, pode ser domesticado.

E quando o animal se torna um com o humano, numa metamorfose em que o último se veste com o primeiro, a materialidade ganha sentido. O vaqueiro sob ordens do patrão é algoz e manada, mas livre da coerção, é quem sabe lidar com o animal, chamá-lo pelo nome. Ele também sabe do tempo da natureza e seus ciclos, das fontes e dos pastos, das veredas e armadilhas, da vida e da morte – ele é uno com o lugar e o animal: a eles pertence e deles “descende”. Quando ciente disso, torna-se aquilo que é: cuidador de rebanhos.

É, parece que a fazenda diz muito sobre nós! Mas para aceitar essa provocação, entretanto, faz-se necessário aquilo que Nietzsche chamou de qualidades bovinas: a arte de ruminar.