Não há notícias de que alguém ande por aí a medir a espessura ou o volume ou o peso das gotas de chuva, o que não exclui a possibilidade de que existam pessoas realizando tão relevante tarefa, grupos de cientistas, estudiosos anônimos e determinados, pode-se dizer até obcecados, incumbidos das obrigações científicas de explicar os mistérios do mundo, imagine dois desses gênios andando por aí, talvez até rivais em competição, Essa mede tanto, Essa mede tanto, Olhe, minha chuva está mais grossa que a sua, venci, Ora, a sua chuva pode ser mais espessa mas a minha molha mais, disputas do gênero tão comuns no dia a dia dos seres humanos seja em que área for do conhecimento, e até do desconhecimento, digamos assim. Vamos desconsiderar momentaneamente essa possibilidade, mas podemos afirmar que chovia uma chuva fina na tarde em que Alfredo conheceu Beatriz e que, a despeito do aparente pouco volume de água presente em cada pingo da chuva que Alfredo tomava, ele estava bastante molhado. Tentou correr para evitar que se ensopasse mas foi uma inútil tentativa, é esse um dilema bastante antigo da humanidade, como se molha mais, quando se corre na chuva com a pressa de terminar logo o trajeto ou quando se anda lentamente, a segunda hipótese demanda mais tempo na travessia porém diminui o impacto das gotas no corpo e ao menos em tese reduz a quantidade de água acumulada, e essa, convém dizer, é a hipótese lançada por um grupo talvez mais preguiçoso ou sem grande vontade de correr, ainda há gente realizando essa pesquisa mundo afora, talvez aqueles mesmos já citados, porém sem resultados concretos, e espera-se para breve uma resposta definitiva a tão inquietante questão, quem sabe a metodologia adequada seja mesmo a medição da espessura das gotas, vamos torcer pelo fim das pesquisas, que já nos cansam a todos esperar, mas por ora pode-se afirmar sem medo de equívoco que Alfredo estava, mesmo, completamente encharcado, nenhuma novidade, era assim sempre que se esquecia de carregar o guarda-chuvas, como naquela tarde. Nunca houve um só dia em sua vida em que, carregando o guarda-chuvas, este tenha se tornado instrumento útil, se o trazia consigo, por mais que ventasse, trovejasse, relampeasse ou sua mãe o avisasse, nada de chuva, nem um pingo, nem uma gota, nem um mililitro, nada, se o céu estivesse pesado e arroxeado para chover não chovia, mesmo que se sentisse o cheiro de terra molhada que anuncia a chuva, é bom que aqui se abra um parêntese para dizer, apenas a título de curiosidade e sem mais pretensões, que tal cheiro nunca sai da terra, mas sim provém de uma bactéria presente no ar e que se rompe em alta de umidade e libera o que se convencionou chamar de cheiro de chuva, e é um cheiro que quase toda a gente diz ser bom, talvez alguma nostalgia atávica, enfim, não é esse o ponto e, sim, que se Alfredo carregasse consigo o guarda-chuvas e o serviço de meteorologia avisasse no rádio de uma chuva torrencial ela não vinha, se a moça do tempo ajoelhasse na tela da TV jurando por todos os santos, por Nossa Senhora, pelo Santo Padre, pela mãe, o pai ou mesmo os filhos que choveria naquele dia, nada, tudo pareceria armado para a mais diluviana tempestade mas ela não viria. Ao contrário, bastava Alfredo sair sem o guarda-chuvas um dia que fosse e lá vinha ela, fina, persistente, constante, não havia como falhar, tudo que fosse ao contrário do afirmado acima, ou seja, mesmo que o céu estivesse azul, aberto, claro, ou, se de noite fosse, estrelado, limpo, mesmo que não houvesse vento nem cheiro de chuva nem previsão meteorológica, mesmo que nos jornais aparecesse ao lado da data de publicação um pequeno sol desenhado, como é de praxe nos periódicos diários, mesmo assim, era só Alfredo se descuidar, se distrair e sair de casa sem o guarda-chuvas pendurado no braço direito e, exatamente após concluir o centésimo vigésimo quarto passo, começava a garoa. Pois era uma dessas tardes. Alfredo havia esquecido o guarda-chuvas, já dera bem mais que cento e vinte e quatro passos, talvez passassem já dos mil e quinhentos, o que nos induz a crer que verdadeira, diante do já exposto, sua situação de encharcado, foi nessa situação que Alfredo, molhado até a alma se almas existirem e de alguma maneira possam se molhar, ao dobrar a esquina deu de cara com Beatriz. A bem da verdade dos fatos é bom considerar que “deu de cara” é uma afirmação hiperbólica, já que Beatriz vinha caminhando em sua direção, porém, à distancia de cerca de um quarteirão, ou algo próximo a cem metros do local em que Alfredo se encontrava naquele instante, e foi tão grande o impacto que Alfredo não conseguiu dar mais um passo que fosse. De alguma maneira, mesmo estando o rosto de Beatriz a tal distância, pareceu a Alfredo estar ali a menos de um centímetro, talvez meio ou menos, de seus olhos, Alfredo nunca havia visto assim tão de perto um rosto de mulher, exceção feita ao rosto de sua finada mãe, e vamos novamente lembrar que o rosto de Beatriz se encontrava a cerca de cem metros de distância. E enquanto ela caminhava em sua direção essa distância caía à razão de um metro a cada dois segundos, agora eram noventa e nove, agora noventa e oito, agora noventa e sete, e assim foi até que Beatriz e seu rosto estacionaram a trinta e oito metros dos olhos de Alfredo, mas para ele foi como se ela estivesse dentro dele, como se ela houvesse invadido cada ínfimo espaço de seu corpo, não mais órgãos, não mais vísceras, tudo agora dentro dele era Beatriz, seu coração pulsava Beatriz, seus pulmões respiravam Beatriz, e para poupar o leitor de descrições anatômicas desnecessárias vamos afirmar que, interiormente, todo Alfredo era agora Beatriz, que se Beatriz respirasse também respiraria Alfredo, que se Beatriz sorrisse também sorriria Alfredo, que se Beatriz derramasse lágrimas haja lenços para consolar Alfredo, e que, se Beatriz por algum motivo misterioso desaparecesse do raio de visão de Alfredo, morto ele estaria, já que, assim como morrem os seres humanos à falta de oxigênio, morreria Alfredo sem Beatriz, que, a partir daquele instante, ele respirava. E naquele ponto da rua ficou Alfredo estacionado, completamente imóvel, quase petrificado, algum desavisado poderia pensar ser uma estátua, uma homenagem dos munícipes ao encharcado anônimo, mas era Alfredo, olhos fixos em Beatriz, que voltara a se mover em sua direção mas ainda sem o olhar nos olhos, não que ela os evitasse, mas é que os olhos de Beatriz corriam alegres pela rua, iam de um lado a outro, de uma calçada a outra, olhavam para baixo e um segundo depois para cima, e muito havia para ser visto pelos olhos de Beatriz que olhava para tudo muito e bastante curiosa e desatenta, e seria muito mesmo uma obra do acaso se em algum momento os olhos de Alfredo e Beatriz se cruzassem, quase tão improvável quanto um choque planetário entre Vênus e Plutão, e Beatriz sorria, e Alfredo tentava entender porque e como em meio à chuva que caía por toda a cidade Beatriz caminhava com o sol brilhando sobre ela. Um sol leve, como um sol que acaba de nascer, refletindo-se nos cabelos, era como se Beatriz emanasse luz, e o sol ainda pintava de leve amarelo as flores que Beatriz trazia na cabeça, e Alfredo ainda também não entendia como e porque ao redor de Beatriz havia borboletas, azuis, verdes, lilases, de todas as cores, que dançavam ao seu redor enquanto ela caminhava e sorria. E Beatriz já voltara a diminuir a distância entre ela e o estacionado Alfredo à razão de um metro a cada dois segundos, agora, vinte e seis, agora vinte e cinco, contemos mais rapidamente e agora eram vinte metros, dezoito metros, agora oito metros, logo seis metros, e então Beatriz parou a exatos dois metros de Alfredo. E se o mundo é feito de regularidades, e se a ciência se baseia nas probabilidades e nas certezas, se as certezas decorrem da razão empírica, a razão, rainha de tudo o que há, se o mundo conhecido é feito pelas convicções e as coisas possíveis (dizem que já é morta a metafísica), nada existe fora da substância, é o que dizem muitos, então se é isso que é, algo de muito misterioso e improvável e enigmático, talvez só compreensível aos místicos e aos que tais, aconteceu. Beatriz parou em frente a Alfredo, olhou nos olhos de Alfredo e sorriu.