“[…]uns nascem para ser lambidos e outros para lamberem e pagarem.”

Quando em 1990 Hilda Hilst envereda propositalmente pelos caminhos obscenos da literatura, passa a ser conhecida pelo grande público brasileiro. Até então somente críticos literários, escritores e escritoras, além de raros e requintados leitores, conheciam e liam a vasta obra da autora. Em 1966, Hilda Hilst decide morar afastada da vida urbana, então passa a viver na chácara Casa do Sol, nos arredores de Campinas. Lá é visitada por muitos amigos, sobremaneira amigos intelectuais, dos quais destacamos o escritor e artista espanhol Mora Fuentes, com quem Hilda teve um affair e para quem a autora deixa todo seu espólio literário. A residência de Hilda Hilst continua a ser frequentada até hoje por pessoas como a amiga e escritora Lygia Fagundes Telles, o cantor e poeta Zeca Baleiro, com quem Hilst fez parceria lítero-musical, e a gente do teatro, como a atriz Tainá Müller, dentre outros. É importante ressaltar que o Instituto Hilda Hilst mantém na Casa do Sol um espaço para representação teatral, tendo sido recentemente palco de Osmo, monólogo baseado no conto hilstiano.

Farta de ser ignorada pelo público, como de certa forma foi preterida pelo pai, quando este, o grave poeta e jornalista Apolônio de Almeida Prado Hilst, ao saber que teria uma filha mulher praguejou: “que azar!”. “A santa resolve levantar a saia,” diz Hilda em entrevista concedida à TV Cultura, em 1990, por ocasião do lançamento d’O caderno rosa de Lori Lamby. A escritora diz que ao longo de mais de 40 anos de produção literária “séria” os editores não a valorizavam, à exceção de Massao Ohno, mas este tinha o péssimo hábito de guardar todos os escritos para si. Em 2001 Alcir Pécora organiza e, então, a Editora Globo publica toda a obra da autora.

Sobre O caderno rosa de Lori Lamby, vale pontuar que uma das primeiras coisas que chama a atenção de seus pesquisadores é a ambiguidade que se apresenta no título . A expressão caderno rosa inevitavelmente remete o(a) leitor(a) ao mundo de uma criança/mocinha sonhadora, mas isso não é, nem de longe, característica da protagonista da história de Hilda Hilst. A menina de oito anos é, por assim dizer, garota de programa, pois é explorada pelos pais e não se incomoda com isso, até gosta, como atesta sua “filosofia” contida na epígrafe do presente texto. Inimaginável. Não?! A ambiguidade continua, ainda, no título da obra. Lamby, o sobrenome da garota, em inglês significa cordeiro, assim, dentro da narrativa, simbolizaria o sacrificado, o imolado, já que os programas da garota sustentavam a família, isto seria uma “grande heresia”, além de ser configurado como um hediondo crime de pedofilia. Lamby também pode estar associado à ideia de lamber e é nessa tese que acreditamos, tanto pelo desenrolar da narrativa, como pela coleta de informações junto ao Professor Dr. Alcir Pécora, amigo, organizador da obra e maior entendedor da escritora, bem como ao Professor Me. Cristiano Diniz, responsável pelo acervo da autora na Unicamp, e, ainda, junto à artista plástica e amiga da literata, Olga Bilenky, que administra a Casa do Sol.

Observa-se que toda a narrativa se dá em primeira pessoa, seja por pronomes, seja por verbos; a narradora-personagem conta em seu diário, de forma “ingênua”, tudo que lhe ocorre, talvez por isso Hilda Hislt tenha afirmado que o livro seria uma obra pornográfica para crianças. Para adultos, ela publicaria, na sequência, Contos d’escárnio: textos grotescos. Seja como for, o objetivo maior foi cumprido: com a ironia típica das mentes extraordinárias, Hilst criticou o mercado editorial e o leitor que busca na literatura as “bandalheiras” que ocorrem na vida real. A partir d’O carderno rosa Lori Lamby, a escritora pôde, finalmente, ser lida.

De acordo com Humberto Werneck (2015), um amigo, ela conta, o pintor Wesley Duke Lee, achou O caderno rosa “um lixo absoluto”. Outro, o médico José Aristodemo Pinotti, ex-secretário da Saúde do estado de São Paulo, considerou que “uma poetisa nunca deveria enveredar pelo pornô”. A escritora Lygia Fagundes Telles admite que ficou “meio assustada, aturdida”. O editor Caio Graco Prado, da Brasiliense, gostou do que leu, mas, temendo o escândalo, não se aventurou a publicar. “Não tive coragem”, confessa. Mesmo o crítico Leo Gilson Ribeiro, há muitos anos uma voz solitária na defesa de Hilda, não pareceu entusiasmado com a mudança de rumos. “Será que o que eu estou escrevendo não é suficientemente pornô?”, indaga ela com um sorriso de menina travessa.

Hilda Hilst é uma autora que vale a pena ser lida, tanto sua produção “séria”, quanto pela sua obra obscena (leia-se: fora de cena). Como poucos, soube lidar com as palavras. Seu legado literário consta de poesia, contos, teatro e romance. Tudo o que ela mais desejava era ser lida. Em diversas ocasiões, citou um verso desesperado da americana Edna Saint Vincent Millay: “Read me, do not let me die” [leia-me, não me deixe morrer].

*Joselita Izabel de Jeus é professora mestra da Uespi

*Maiele Carvalho da Silva é graduanda em Letras Português pela Uespi

(Artigo publicado na Revestrés#32 – Agosto/Setembro 2017)