“O humano só é humano por saber que pode deixar de sê-lo”  – Dominique Bertrand

“Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” – Giorgio Agamben.

O mistério maior não é que os humanos se matem uns aos outros por razões inexplicáveis até mesmo para eles. O mais impressionante não é o canibalismo, dizia Levy-Strauss, mas o fato de que, a um certo momento, as pessoas interromperam isso! Mas por que será que a violência urbana – essa que torna a cidade um campo de guerra disfarçado – permanece assim, apesar de tantos progressos tecnológicos e econômicos? Se a polaridade que definia uma classe contra outra assume um espectro infinito de nuances, por que o diferente continua tão ameaçador?

Não é difícil reconhecer que a agressividade faz parte da nossa condição. O sufixo “agr” está presente tanto em agregar quanto em agredir. O mesmo procedimento que concede identidade e pertinência produz, simultaneamente, a exclusão do outro. A convivialidade, a cultura e seus avatares são redes tênues que exigem constante recarga no intuito de fazer da cidade um espaço de acolhimento para cada um de nós. Nesse tema tão árduo, no qual a transdiciplinaridade é exigida, proponho como fio condutor o documentário Chico, artista brasileiro, de 2015.

Por coincidência, eu estava lá, de passagem, em dezembro de 2015, quando jovens cariocas do Leblon agrediram o artista verbalmente, na saída de um restaurante. Soube, na ocasião, que sua reação aos xingamentos tinha sido atravessar a rua e ir lá falar com as pessoas, tentar entender o que se passava. Sendo moradores do mesmo bairro, por que os xingamentos expressavam, de certo modo, uma delimitação de território? O que tem se modificado na cidade e motiva aquela cena, na qual um dos grandes compositores da música popular foi convertido em um inimigo público? Outros incidentes, em seguida, confirmam novas investidas contra sua família, na internet e pessoalmente.

Considerado por seus vizinhos alguém indesejável por mostrar sua aliança com o PT e o presidente Lula, seu modo de reagir poderia ser escutado também no show homenageando Betânia e a Mangueira, quando o compositor lançou mão de uma mensagem que me pareceu um argumento: se as camadas sociais menos favorecidas estão, nos últimos tempos, ocupando espaços antes monopolizados por uma minoria, existe a resistência da classe média, que recusa a ascensão popular, afirmando sua diferença, tal como faziam os donos de escravos quando afirmavam que estes não conseguiriam a liberdade. Dizer isso através da primeira canção do show, “Olhos nos olhos”, é, no ato mesmo do espetáculo, produzir efeito de lirismo instigado.

Chico Buarque é uma figura emblemática da música engajada, da defesa da diversidade social, do respeito pelas profissões menos valorizadas. É um valor à mestiçagem que ele afirma, por exemplo, em sua canção sobre o pai que era paulista, o avô pernambucano, o bisavô mineiro, o tataravô baiano. Netos negros, outros louros, tocam juntos com ele no filme. Então de que maneira sua vida pessoal, relatada no documentário, explicaria esse acontecimento de violência urbana? Quais razões mobilizariam os jovens do Leblon a recusarem esse hibridismo tão valorizado em outros momentos? De maneira coerente, o artista admite a resistência, aceita que os oponentes escapem à cortesia fingida, e opta pela conversa, dirigindo-se para perto deles.

A repetição do sacrifício do igual, em vários mitos, equivaleria a uma repetição temática estrutural, ocasionada pelo fato de sermos dotados da linguagem, tal como é a nossa, que inclui a possibilidade de cada um se dar conta de si. Nascemos todos despreparados para exercer a fala, é preciso aprender, e esse aprendizado consiste em escutar o que diz o outro. Não há negociação quando se trata das identificações de base. Somos mamíferos e nascemos um de cada vez, tanto no sentido fisiológico quanto na dimensão solitária da constituição subjetiva, ao nos recortarmos do Outro. A linguagem permite e viabiliza a lucidez e o reconhecimento de si, mas nunca dá conta da tensão inevitável ao processo de orientação subjetiva, imprescindível para saber quem se é. O embate com o outro, o semelhante, engendra a dimensão enigmática dos traços que carrego à minha revelia. Não existiria humanidade, tal como conhecemos, se cada um conseguisse decifrar sua verdade sozinho.

No entanto, cada qual se sente ameaçado por essa pressão decorrente da proximidade do outro que viabiliza e, simultaneamente, inviabiliza o encontro de si. A inveja, nesse sentido, seria nossa emoção mais básica, tal como sinaliza o  mito adâmico na história de Caim e Abel, por efeito desse movimento de identificação com um outro que é mais, pode mais, vale mais. Só há identificação em função de um movimento igualmente expressivo de diferenciação, de afastamento. Desses movimentos, sequer os filhos únicos escapam, pois sempre aparecerão outros personagens na vida de uma criança, para além de sua família nuclear. É ainda importante lembrar que os amigos, os pais e os avós também estão no páreo pelo amor uns dos outros.

O filho do Sérgio Buarque de Holanda fala do pai como uma figura importante no apoio à sua arte, mas também como o pai de qualquer um, aquele que por definição, sempre será ou excessivo ou insuficiente, de modo a deixar existir um sujeito no intervalo que for conquistado entre esses extremos. “De onde veio seu talento?” parece ser a pergunta que Chico responde com a foto do pai pouco à vontade, com uma expressão de sofrimento mesmo, com os filhos em torno dele. Ele estava sempre ocupado, diz Chico, explicando por isso seu interesse pela escrita. “Escrevia para me aproximar dele”: é essa a frase que inicia o documentário. E o que é escrever se não colocar as coisas em uma sequência que faça sentido? Muito mais que combinar caracteres, escrever, com letras imagens, cifras ou notas musicais, é produzir no mundo um esteio, uma direção.

A certa altura, já artista reconhecido, Chico ficou sabendo da existência do irmão, que teria nascido quando o pai passou uma temporada em Berlim: o irmão alemão, que levava o nome do pai, Sérgio também. Sua existência foi comunicada por Manuel Bandeira em um jantar, em que os óculos grossos do poeta parecem lembrar Tirésias. Como assim, um irmão? E Chico vai atrás das marcas desse outro Sérgio, brasileiro em Berlim, que morreu antes deles se conhecerem. A cenas finais mostram um vídeo do irmão assobiando, como o pai também assobiava, em um eco dos exercícios imitando os sons dos pássaros até “Sabiá”, interpretada por Carminho. De certo modo, um xingamento dos rapazes pode ser escutado como investimento semelhante na pulsão invocante, lançando um apelo, um brado, igualmente sonoro, nessa mesma direção: “Você não é meu igual”!, gritam eles, como recurso para se identificarem uns aos outros.

No filme, também, como na vida de qualquer um, confrarias, times e torcidas nos trariam esse “pai” no sentido mítico de referência que une, articula e produz fluxo e vida, até mesmo depois da morte. Irmão, nesse sentido, não é a pessoa que descende dos mesmo pais, mas principalmente, o igual, o semelhante, o que caminha na mesma calçada e escapa – enigmaticamente – de ser “devorado” pelo outro através do xingamento em suas muitas formas. A história do irmão excluído da família pode ilustrar essa forma simbólica de canibalismo que permanece entre os humanos, mostrando o quanto as questões subjetivas atravessam o tempo, as classes sociais e o preconceito, que exclui a existência do irmão e mantém o tema como um tabu, uma forma de morte, de exclusão radical, tão comuns ainda hoje. Mesmo “reconhecido” no cartório, inclusive na manutenção do mesmo prenome, aquele irmão não conheceu os outros irmãos, não entrou na composição de uma fraternidade, da mesma forma que os jovens não se consideram “iguais” a Chico, embora sejam todos brasileiros.

No início do filme, há uma referência aos numerosos livros, que na casa de seus pais preenchiam todas as paredes, até mesmo da cozinha e dos banheiros. Chico enfatiza: tinha a impressão de que se retirassem os livros as paredes desmoronariam. O que estava escondido por trás das estantes? A tragédia básica do humano, o sacrifício da criança, daquilo que em cada um de nós, transmite, reproduz, à revelia, que não se escreve nunca de modo definitivo, exigindo que cada cidadão reedite sua entrada no mundo por meio do reconhecimento daquilo que precede sua chegada.

E por que o mito esclarece essa problemática? Ao invés do sentido comum, que aproxima mito a engodo, Eduardo Viveiros de Castro (2015), em Metafísicas Canibais, explora os desdobramentos éticos da contemporaneidade, que apesar de pautada por novas relações de parentesco não escapa à transmissão da dívida, do dom, da fraternidade e do canibalismo simbólico como formas de humanização.

A obra de Chico constitui um esteio nesse sentido. Ao fazer do irmão desaparecido o tema de um livro e um ponto importante do filme, Chico mostra que mesmo os filhos que sobrevivem e são reconhecidos, são, de certo modo, também sacrificados ao se colocarem “no lugar” do irmão, o semelhante, vítima do preconceito da família tradicional. Inevitável lembrar de Herodes e Jesus, a narrativa que orienta uma parte da nossa brasilidade. Se somos todos bastardos, na fantasia básica de toda criança que se dá conta de não ser única no amor dos pais, somos todos artistas, capazes, como Chico de formular de muitas maneiras a história de nossa vida. Se o pai é capaz de abandono, é ele mesmo, sua função nomeação, sempre insuficiente, porque é assim para os humanos, de qualquer cultura ou época; essa própria insuficiência constituindo o fator de produção de cultura.

O livro faz as honras fúnebres ao irmão excluído e atualiza, na cena de violência urbana, o enigma, já lançada por Freud: os irmãos, será que existem para fazer existir a diferença? E ao reunir os diferentes, não seria esse elemento aglutinador que se pode denominar “pai”? E este, qualquer que seja seu nome, não é justamente aquele que será sacrificado, para que o “novo” pai – a criança-irmão que se faz adulto – apresente-se? A história humana confirma a sucessão das formas possíveis de transmissão e atualização desse enigma, paradoxo presente em todas as histórias já escritas: para saber quem sou, preciso me diferenciar do outro, abrindo um espectro infinito para essa atualização.

As nuances possíveis para a distância entre a pessoa e seu lugar no mundo são estabelecidas em função da capacidade que ela desenvolva de dar suporte – suportar – o diferente. Isso não depende de classe social, nem de boas maneiras, mas da consolidação de uma educação que, desde a intimidade, proporcione uma visão da cidade como sendo de todos e de cada um. Aproximo-me assim de Zizek, quando afirma que não importa quem seja o político alçado à condição de presidente. Tanto faz um ou outro, pois o mais importante é a participação de cada um nos rumos da cidade, dos destinos que nos unem a todos no espaço urbano. Essa responsabilidade, para alguns, desencadeia uma orfandade, constituindo um dos fatores que alimentam o “fogo amigo”, a violência urbana à brasileira que conhecemos em nossos dias.

Eugênia Correia é Psicóloga, Psicanalista e Professora da UFPB. Atualmente reside em São Paulo, onde faz pesquisa de pós-doutorado na PUC/SP.

(Publicado na edição#24)