A ideia de MPB, entendida enquanto uma representação social ordena e informa a existência de diferentes formas de entendimento do que seja a canção no Brasil num período específico de sua trajetória. É simbolicamente significativa para se refletir sobre o tema.

De início chamo a atenção, por meio de uma metáfora, para o aspecto “elástico” e “modelar” que a sigla adquiriu ao longo de sua recente história. “Elástico” por que se ampliou e conseguiu abarcar referências estéticas e ideológicas que não estiveram no início de sua conformação tanto espacial quanto temporal. “Modelar” por que ao fazer isso passou a adquirir as formas que absorveu em seu desenvolvimento histórico. Se a MPB não é mais uma medida dominante para se discutir as questões postas no cenário urbano musical brasileiro contemporâneo, ela ainda se constitui como uma referência que atribui status àqueles que dela recolhem sua herança.

Pego de empréstimo do historiador Adalberto Paranhos uma formulação que pode ser apontada nesse sentido: a propósito de um show realizado em 2012 no qual Chico Buarque fez uma homenagem ao rapper Criolo, que se apropriou da composição “Cálice”, Paranhos diz que: “o rap, frequentemente olhado com desdém, quando muito como uma espécie de filho bastardo da arte, era convidado, por essa via, a adentrar de uma vez por todas nos circuitos de consagração simbólica”.

Apesar da citação não se referir diretamente à incorporação do rap à ideia de MPB, ela aciona aquele que é considerado um dos seus principais artífices. Mesmo ainda não aceito de forma integral nesse universo musical, o rap ganhara de Chico Buarque, no entanto, a senha de entrada. Aqui, a “elasticidade” da ideia de MPB pôde alongar seu arco de influência e como um tecido fino cair sobre este gênero musical, adquirindo assim sua “modelagem” e inventando novas formas possíveis de existir sem perder, no entanto, os limites que a identificam enquanto código cultural.

A letra criada pelo rapper sobre a melodia da música “Cálice” é uma crítica social que busca dar visibilidade às populações marginalizadas das grandes cidades. Traz no seu discurso uma atualização e problematização da ideia de “povo” na música popular, palavra essa cara aos debates estéticos-ideológicos que forjaram a MPB nos anos 1960. Para ficarmos no mesmo artista, além do “bate-bola” com Chico Buarque, o rapper Criolo também estabeleceu parcerias com Milton Nascimento na turnê “Linha de Frente”, de 2014, e na composição “Dez anjos”, presente no CD “Estratosférica”, de Gal Costa, lançado em 2015.

Para o sociólogo José Roberto Zan, a MPB surge num período marcado pela emergência da sociedade de consumo e da cultura de massa no país, como um tipo de música produzida e absorvida por segmentos intelectualizados da sociedade que passam a definir parâmetros de hierarquia artística, utilizados pelo mercado, ao levar para o interior da canção popular questões como o engajamento político e identidade nacional, ampliando o “leque” de gêneros musicais como marcas da nacionalidade. A tropicália seria o momento agudo desse processo com sua postura antropofágica, dessacralizadora e autocrítica da canção.

O musicólogo Carlos Sandroni afirma que os anos 1990 marcam o esvaziamento quase que completo de seu sentido original, tornando-se apenas uma etiqueta mercadológica. Os valores estéticos e ideológicos que aglutinavam uma pluralidade de gêneros e estilos musicais populares não seriam mais capazes de agregar as diferentes tendências musicais presentes na fragmentada realidade musical brasileira. Em que pese análise de Sandroni no sentido de evidenciar tal esvaziamento, o caso citado no início, envolvendo Chico Buarque e Criolo, mostra que os elementos e valores de legitimação que remetem ao estabelecimento da MPB enquanto instituição cultural no Brasil ainda são acionados para estabelecer com ela vínculos e dar distinção às produções musicais contemporâneas.

Apesar de não carregar o mesmo peso simbólico que no momento de sua gestação, a ideia de MPB permanece nos dias de hoje como uma referência através daqueles que são considerados seus “pais fundadores”, que direta ou indiretamente garantem certas continuidades ao terem suas “bênçãos” aceitas pelos novos artistas que passam a surgir no cenário musical brasileiro e que fazem parte daquilo que a atual crítica musical chama de “nova MPB”. Ou seja, um processo histórico ainda em movimento como um dos definidores dos parâmetros da música popular brasileira. Resta dimensionar em que medida essa nova nomenclatura guarda relação com a “antiga MPB”.

*Hermano Carvalho Medeiros é mestre em História do Brasil

(Publicado na Revestrés#28 – dezembro de 2016 / janeiro de 2017)