“Não queria aquele filho. Jamais quis”.

Romeu via a chuva cair através da janela. O limpador movendo-se rápido, raspando a grande mancha de água do vidro, e o motorista manobrando a cem por hora. Era inverno.

Apertou a mão fraca de Julieta, sentindo seu coração bater na ponta dos dedos, sentindo o coraçãozinho do filho através do seu olhar absorto. Conteve, a custo, o desespero.

− Está estável, pai − disse-lhe a enfermeira, sugando o cuspe da boca da outra. −Não há com que se preocupar.

Tempos antes, quando mirou os olhos marejados de Julieta, sentira ternura e medo. Na tela, viu só uma mancha, sem identificar um filho ou uma vida ali.

− Parabéns, pais. Aqui está o filho.

− Onde? Onde?

Romeu viu Julieta feliz, naquele momento de choro compulsivo. Mas, o estômago embrulhava em suas entranhas. O terror de ser pai tão jovem…

Agora, sentia a vida lhe escapar dos dedos: a ambulância seguindo rápido, não parava em sinal vermelho e, àquela hora, nenhum outro veículo nas ruas. Agora, sentia frio, e nojo da placenta que escorria nas pernas de Julieta. A sirena alto lá fora – como um grito – mas aqui só a apreensão: se acalmasse o coração, nada mais ouviria. Uma mancha no vidro, o brilho do semáforo, “vermelho é de sangue”. Julieta na maca ao lado, aquele barrigão – “meu filho”. Ela respirava ofegante e gemia abafado com a máscara de oxigênio. Apertou-lhe a mão uma vez mais.

Em maio passado, bem perto dos dias das mães, foi que Julieta descobriu a gravidez. Com Julieta, saíram para comprar arranjos de cactos, os preferidos de sua mãe. “Em vez de cactos, leve aqui duas mudas de rosas vermelhas: uma para sua mãe e outra para mim”, Julieta disse, pousando a mão rude do homem naquela barriga esguia. “Parabéns!”.

Pensou nos seios e já sabe que aqueles seios vão murchar, ficarão cheios de leite e murcharão após a gravidez. Mas tudo era só o começo e o mínimo. A responsabilidade inerente, os compromissos, a vida adulta.  Abandonaria, definitivamente, os sonhos e desejos e veria, ainda, a esposa envelhecer, inchar e as marcas das estrias.

A noite não cheira mais à fornicação e saraus, o destino cercando e enlouquecendo sua vida, calmamente, como uma criança que cresce. Todo amor é agora uma simples obrigação e perdeu o desejo do inexplorado.

Só que a gestação pintou o rosto de Julieta com afeição e vaidade. Jamais vira a amada tão esplêndida. Penteava o cabelo de modo diferente e, com desejo, comia chocolates ao leite, que adocicavam seus lábios e hálito. Romeu lembrou o que sentira naqueles beijos e agora de súbito, mesmo sedada, Julieta deixava escapar um suspiro doce.

Na ponte, o letreiro em LCD iluminou o interior da ambulância com as cores da Coca – Cola e Romeu vê seu reflexo no vidro interno: barba e olheiras bastante acentuadas. Não vê − estão aqui − os fios brancos que incomodam e perturbam.

Havia comprado o par de alianças, mas tivera dúvidas. Escreveria uma carta: pediria em casamento ou pediria desculpas e deixaria a vida certa pela amante, ou, quem sabe, escreveria a Julieta pedindo que abortasse? Não, já sentia e nutria carinho ao outro.

“O nome? Irá se chamar Pedro”.

“Pedro é seu tio morto”.

“Será Romeu… Romeu Filho”.

− Parabéns, pai. Aqui está o filho, disse − lhe a enfermeira, ao atravessar o saguão de espera.

Romeu segura aquele embrulho − o nome bordado nas mangas da blusinha de lã. O bebê já refeito do choro da vida, do esforço dos pulmões quando se injetou ar pelas pequenas fissuras do rosto.

Sentiu lágrimas caindo dos olhos, viu o futuro.

Era Romeu Filho engatinhando e os primeiros passos; a primeira palavra dita; o primeiro dia de escola – “será destro ou canhoto?” Ou, vendo uma sombra de terror e tragédia, quem sabe, essa pequena criança afogando − se na piscina aqui do condomínio?

“Deus me livre”.

E não era mais livre. Não mais.

No quarto, Romeu vê Julieta ainda com as marcas da gravidez: uma cara anêmica e a barriga flácida, e lhe entrega o pequeno Romeu Filho, que o agarra como a coisa mais importante, o presente mais bonito, o amor.

Trinta anos depois, recebo um embrulho do meu antigo endereço, a casa dos meus pais, onde mamãe mora ainda com as duas outras filhas. Julieta ainda é lúcida, sabe escrever ainda o seu nome, mesmo em letras trêmulas. Uma carta, com sua assinatura, fala de um diário secreto de Romeu, meu pai. Escreveu desde os meus primeiros anos de vida e chega a explicar até o porquê do primeiro nome. Reconheço suas letras triangulares. Na primeira linha:

Ser pai é o que há de mais sublime no mundo…

(Publicado na edição #26, Agosto/Setembro de 2016)

Lazarus Silvestre é pseudônimo de Diego Noleto, jornalista e contista formado em Letras pela Ufpi e especialista em Literatura e Estudos Culturais. 

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