Escrevo estas linhas enquanto uma chuva com vento cai sobre minha vida. Talvez fosse melhor dizer escrevo estas linhas porque há uma chuva fina lá fora, e um vento suave, e essa chuva e esse vento me molham a alma aqui dentro. O certo é que essa chuva oblíqua e esse vento manso me trazem Anita, e eu nunca entendi direito essa cisma de Deus. No começo, assim que ela se foi, a visita do vento e da chuva doía como uma palavra áspera em pleno rosto. Hoje, tempos depois, uma lágrima única, solitária, em lenta queda, teima em descer do olho esquerdo. Quem sabe não exista mais dor, e essa lágrima seja, na verdade, a forma mais pura da saudade?

Quando conheci Anita, e já lá se vão uns trinta anos, um rádio longínquo anunciava o Comício da Central do Brasil. Ela pedalava uma bicicleta, Bistrol a marca, e uma calça comprida muito justa insinuava mistérios recônditos. Chovia na praça e um vento leve balançava as copas das árvores e esvoaçava-lhe os cabelos. Ali, sob a chuva e em meio ao vento, deparei o amor do mesmo modo que, mais tarde, entre chuva e vento, saberia a dor.

No dia em que Anita foi embora, deixando um miúdo bilhete, ainda hoje guardado no bolso esquerdo, a chuva era fina e o vento não mais que uma brisa.

Para escapar desse vento e dessa chuva mergulhei na labuta. Era o primeiro a chegar ao jornal e o último a sair, altas horas. O barulho ensurdecedor das máquinas, o cheiro de tinta, a algazarra dos gráficos subtraíam-me do mundo. Nunca mais aquela chuva, nem aquele vento.

Até que um dia, ao escrever uma matéria, olhei pela janela e então, o susto. Lá estava ela, a chuva, e ele, o vento. Fina e regular, ela, calmo e sem pressa, ele. O pranto, nessa época, caía aos borbotões, e os dedos amassavam o bilhete, no bolso esquerdo.

Nunca mais me abandonaram, o vento e a chuva.

Resolvi, então, conviver com eles. Por isso é que, quando chove lá fora, como agora, e um vento leve sopra em minha direção, tomo do papel e escrevo. Hoje, estas linhas. Amanhã, quem sabe, ou depois, outras em que eu conte que essa lágrima que teima em cair do olho esquerdo quando a chuva vem e o vento zune não é mais lágrima, é um orvalho.

Pode ser que, neste momento, eu tenha recuperado Anita*

*Airton Sampaio foi um dos editores da Revista Pulsar e foi considerado o melhor contista da literatura piauiense. Faleceu em agosto de 2016.

(Publicada na Revestrés#29 – Fevereiro/Março 2017)