A primeira vez que ouvi o nome Torquato Neto não sei quem o pronunciou. Foi em 1977, ano em que cheguei a Teresina, procedente de Oeiras. Não sabia de nada – continuo sem saber – e a poesia era algo que estava no ar, como muitas coisas que vinham a mim e outras tantas que eu corria atrás. Os sons daquele nome foram ditos de forma tão sensível, envolvidos por uma emoção tão especial, que me impressionaram. Vinham, com certeza, de um admirador sincero. 

Fiquei com aquilo na cabeça e com vontade de conhecer o poeta. Na Cromwell Carvalho, que eu frequentava, não o encontrei. Mas aí deu-se, por destino mesmo, que o conhecesse através de Geleia Geral. Meus trocados de estudante deram pra adquirir a coletânea A Arte de Gilberto Gil, e estava lá não só a canção-manifesto, mas também Marginália II e Louvação.   

Eu já sabia da existência da Tropicália porque tinha lido um pouco sobre o movimento e porque na casa da minha avó, onde fui morar, meu irmão tinha um velho gravador e uma fita com várias canções da MPB, entre as quais, Tropicália, de Caetano Veloso. Mas foi Geleia Geral que me chamou mais atenção naquele momento. Depois de conversar com Paulo Machado, ele me disse: vou emprestar um livro que te vai fazer bem. Foi lá dentro e trouxe nas mãos Música Popular: de olho na fresta, de Gilberto Vasconcelos. 

A vida foi passando, claro, que a vida não espera ninguém. Fui conhecendo Torquato de forma despedaçada. Convinha para minha pobre cabecinha que isso ocorresse em doses homeopáticas, mas também porque aquela época não era como hoje, em que se encontra muita coisa sobre o poeta, sem sair de casa, acessando a internet. 

Mas digo: o pouco que sabia era suficiente para abalar as estruturas. E o que eu conhecia era o Poema do Aviso Final, filme nenhum e as canções (“tão frágeis quando escritas / tão fortes quando cantadas”, segundo Augusto de Campos), que mexiam tanto comigo. Talvez Torquato tenha sido “um poeta da poesia escrita que se converteu à palavra falada”, no dizer de Décio Pignatari. Mas isso é pouco. 

Eu era tão desinformado que somente após a Torquatália – evento no Teatro 4 de Setembro, que marcou, em Teresina, os 10 anos da morte – vim ler Os Últimos Dias de Paupéria e os textos assinados por ele na coluna do jornal carioca Última Hora. Era uma prosa ágil, super direta, como se estivesse conversando no estilo coloquial da juventude urbana do início da década de 70. Escrever em jornal daquele jeito, meu Deus, o que era aquilo?! No meio de tanta coisa sobre arte, principalmente música, Torquato dizia coisas assim: “Você pode sofrer, mas não pode deixar de prestar atenção”. “Quem não se arrisca não pode berrar”. Quem faz textos como Cogito e Pessoal e Intransferível não pode ter vindo aqui para brincadeira. O poeta fez e escreveu como viveu: inventando o perigo, destruindo a linguagem, explodindo com ela… 

Tanto explodiu que abriu o gás. 

Aí minha dificuldade, o lado ator-mentado do poeta. Eu não tinha nenhuma questão religiosa ou moral contra o suicídio, tinha medo mesmo era da loucura. Quando vejo as fotos dele no Sanatório Meduna, lembro sempre do meu irmão, também poeta, que esteve lá, levado por mim.  

Um bom autor nem sempre ou quase nunca é um autor fácil, e Torquato era irresistível, mas nunca fácil para mim. Era um enigma que a dor lancinante e a morte, com tantos avisos em sua obra, só vieram acentuar e que as canções souberam transmitir tão bem, como Três da Madrugada, na voz de Gal, e todo dia é dia D, que ouvia e sentia arrepiar, talvez não por medo, ou sei lá, mas por ver temas tão difíceis envoltos por tocante e grave beleza.  

Um dia, estava na Defensoria Pública e encontrei Heli Nunes, pai de Torquato. Sabendo que morava no bairro vizinho ao meu, ofereci-lhe carona. Ele aceitou e fomos conversando. Em dado momento, pedi-lhe para falar sobre o filho. Fez longa pausa e falou. Não muito. Seu silêncio, cheio de abismos, revelava muito mais e eu procurava juntar os cacos do pouco que sabia. Aquele homem ainda sofria, e foi isso que me disse: Torquato perdera-se.  

Ao chegar em casa, pus para tocar A Rua, canção que mais gosto, lembrando como o pai, tão espírita, tão comum, havia sido amável, mesmo na dor. Isso pra mim também faz parte da poesia e do mistério que meu coração não consegue compreender.