Ser cronista é bom porque a gente pode escrever sobre qualquer assunto, em tom de conversa. Não sei se o leitor vai gostar, mas hoje escolhi falar sobre George Harrison. Sei quase nada sobre ele, conheço-lhe duas ou três canções, mas mesmo assim tomei de assalto o tema (melhor dizer: fui tomado) e agora estou alinhavando o texto que o leitor verá costurado e impresso. Essa aparente vantagem do cronista, não ser expert no assunto sobre o qual vai discorrer, pode parecer leviandade, mas não é. Na real, é uma dificuldade: o cronista tem de superar aquilo que não sabe e para isso recorre à sensibilidade, rasga o coração, lança mão da licença poética, e no final estará pronta a crônica.

Aconteceu o seguinte: li uma entrevista com o ex-Beatle, que me cativou por um monte de coisas, entre elas, a sinceridade.  Estou falando dele, mas o que quero mesmo é falar de mim. George Harrison desde sempre teve indagações espirituais, e o início de sua busca intensa aconteceu quando eclodiu a experiência dos anos sessenta. Você sabe, os Beatles tiveram muito sucesso e tudo e mais um pouco neste mundo. Mas Harrison não estava nada satisfeito com isso. Era como subir ao topo de um muro e ver muitas coisas do outro lado.

Pode parecer sintomático que, sendo músico, Harrison tenha sido impulsionado pela sonoridade de um mantra. Antes da dissolução do quarteto, em 1969, ele e John Lennon ganharam um disco com o mantra Hare Krishna e a partir de então o tocaram e cantaram bastante. Como entender que poucas palavras ditas com uma melodia possam provocar transformação numa pessoa? George explica: o mantra “é uma expressão mística contida em uma estrutura sonora”. O ato de cantar faz parte de um processo que torna tudo claro com o estado de consciência expandida.

Desde que ficou fascinado pelo mantra, Harrison passou a ser visto em companhia de homens de cabeça raspada, vestidos em trajes da cor de açafrão. Eram devotos do movimento Hare Krishna, fundado por Srila Prabhupada nos Estados Unidos, depois de vir da Índia em um navio cargueiro. Ele não só se transformou em um dos principais divulgadores do mantra, mas também passou a falar abertamente de Deus nas canções, como My Sweet Lord. “Naquela época ninguém se dedicava àquele tipo de música no mundo pop. Eu senti que era algo muito necessário. Então, ao invés de sentar-me e esperar que alguém o fizesse, decidi fazê-lo eu mesmo”.

O mantra Hare Krishna acendeu um rastilho de pólvora. Outras celebridades costumavam também cantá-lo, como o poeta Allen Ginsberg, tocando harmônio. Lennon e Yoko Ono gravaram Give Peace a Chance num quarto de hotel, em Montreal. Harrison organizou o famoso Concerto para Bangladesh, com Ringo Star, Eric Clapton, Bob Dylan, Leon Russel e Billy Preston. O mantra foi incorporado aos protestos contra a guerra do Vietnam.

Era incrível o que estava acontecendo, mas, além de todo o glamour, estavam os ensinamentos de Srila Prabhupada, que trouxe uma maneira nova para o Ocidente abordar questões espirituais, muitas delas baseadas no poema épico Mahabharata, diferentes da concepção judaico-cristã.

Harrison foi fundo na experiência. Às vezes, dizia ser um devoto à paisana ou um yogue disfarçado. “Prefiro ser um devoto de Deus do que uma dessas pessoas direitinhas e supostamente sãs e normais que simplesmente não entendem que o homem é um ser espiritual, uma alma”.

O mantra Hare Krishna foi criado por Shrii Caetenya, no século XVI. Há uma linda história sobre ele, contada pelo mestre tântrico Shrii Shrii Anandamurti, que não desvinculava espiritualidade de política, economia e sociedade.

Shrii Caetanya propagava o kiirtan (canto coletivo do mantra) e atraia milhares de pessoas. Sacerdotes e funcionários, sentindo-se ameaçados pela mensagem espiritual daquele santo, dirigiram-se ao soberano, acusando o movimento de perigoso ao governo. A prática foi proibida, mas para os soldados era difícil interromper o canto, a não ser com espancamento e morte. Em resposta, Shrii Caetanya organizou um cortejo em que todos cantavam portando uma vela. Era um festival de música e luzes, dirigindo-se à casa do soberano, que se enfureceu e enviou um batalhão de homens para dissolver a manifestação. A vibração era tão forte que os soldados desceram dos cavalos e se uniram aos devotos. Outra expedição foi enviada, sem sucesso.

Tão logo ouviu o canto aproximar-se de sua casa, o soberano quis verificar pessoalmente o fenômeno e viu Shrii Caetanya, resplandecente, à frente do cortejo. Sentiu o horror que havia cometido e a partir daquele instante fez tudo para proteger e encorajar o canto coletivo do mantra.

Certamente, George Harrison teve empolgação semelhante. Deve-se a ele grande parte da propagação do mantra e dos ensinamentos espirituais de Srila Prabhupada. Eu mesmo ouvi Hare Krishna ainda menino em Oeiras. Achei bonito, mas não fiquei extasiado.

O mantra que me pegou foi Baba Nam Kevalam, criado por Shrii Shrii Anandamurti, em 1971. Ouvio-o pela primeira vez há quinze anos e nunca mais deixei de cantá-lo um só dia.  Os orientais são mestres em descomplicar as coisas. Quem poderia supor que apenas três palavras repetidas numa melodia simples teriam o dom de abrir caminhos na escuridão? .

(Crônica publicada na Revestrés#31 – Junho/Julho 2017)