Depois que foi aberta a avenida, resolvi visitar meu amigo, curioso em saber o que  achava da novidade. Ouvi falar que havia chovido, por isso exultei. Com as chuvas, ele fica mais garboso. Oportunidade melhor em reencontrá-lo não havia. Mas que nada! Cheguei na cidade, não havia rastro de chuva. O sol, como sempre, dominava tudo. Se o seu reino fosse somente luz, viveríamos no melhor dos mundos possíveis, mas os raios viajam numa velocidade louca, ávidos por beijar tudo e todos com amor, mas também em queimar até nossas entranhas.

Em verdade, dois ou três dias antes, chovera. As nuvens esconderam o sol. Deu pra atenuar o bafo de fornalha. Mas durou pouco. Foi só uma trégua. A estrela voltou com redobrado furor, apagando qualquer vestígio da peneira de água sobre nós.

Fui vê-lo de manhã cedo, que não há hora melhor para isso. Pessoas caminhavam na avenida, indo e vindo, aspirando o ar novo, que vem do nascente. Descobriram aquela quadra, ainda com poucas casas, o horizonte meio aberto. Meu amigo observava tudo, sem dizer palavra. Às vezes, um caminhante olhava, comentava qualquer coisa passageira e retornava ao tema de sua conversa ou de suas preocupações. Mas eu não. Mirei-o longamente e quis saber como estava se sentindo.

É muito difícil dialogar com alguém que cultiva o silêncio e leva essa atitude às últimas consequências. Num mundo em que há sofreguidão em busca de palavras, ou do que elas ocultam, melhor dizendo, em busca de sons, cores, estímulos, qualquer coisa para preencher ou camuflar o vazio, os que fazem opção pelo silêncio são incompreendidos. Não diria que está pagando o preço da radicalidade. Pefiro dizer que fala (e ouve) de outra maneira.

Com o silêncio há aceitação. Meu amigo recebe tudo que lhe fazem, sem pestanejar, sem se rebelar. Nisso e em sua beleza residem dignidade e mistério. Às vezes, me revolto por que é assim, mas no fundo compreendo. Ele sabe o que faz, obediente às ordens que vem de sua sabedoria, não ensinada por nenhum de nós.

Indiferentes à imponência e solidez, os que chegaram primeiro construíram casebres do lado esquerdo. As vielas foram nascendo, tortas, como a vida, perto dos paredões, dos espinhos das macambiras e das locas onde morcegos e lagartixas se aninham. Só não lhe subiram com as casas pelas costas porque nisso ninguém se atreve. Mas lhe espetaram antenas de rádio e TV, desnudaram o corpo santo, por não estarem interessados em saber que é mais soberbo vestido das plantas que ficam raízes nas pedras.

À tardinha, ou quando vai amanhecendo, na verdade, em qualquer hora do dia ou da noite, parece um animal insone e imóvel. Por quem velam a silhueta vigilante, a fisionomia dura, o olhar inflexível? Disse alguém, anos atrás: cuida dos destinos da cidade, para que não se perca. Sinceramente, não creio nisso. É a Grande Testemunha.

Do lado direito, a novidade, a avenida, larga, o asfalto brilhando sob o sol. Bastou que fosse construída, rasgando o último pedaço de mata, existente ali desde que o mundo é mundo, para que “limpassem” o pequeno espaço entre o meio-fio e o início da encosta. Como alguém calvo de repente, meu amigo está ficando nu.

Pior sorte que a dele é a do vizinho, o Uberaba, e suas corcovas cheias de pequenos caminhos d’água e pedras parecendo cascos de tartaruga. Lá em cima, a brisa refrescante. No início da subida, um jardim úmido, cheio de plantas nativas, pois havia ali, até há bem pouco tempo, um olho d’água, que agora não mina mais. Em dois tanques cavados na pedra, usados pelas lavadeiras, sapos copulam.

É inacreditável, mas um loteamento está se formando ali. Pessoas quebram a maravilha para construir casas. Ruas são abertas. É claro que meu amigo não faz nada contra isso. Ele e sua obediência quase religiosa não podem salvar a si mesmo.

Do alto do Uberaba, pode-se vê-lo estendido na paisagem. Às vezes penso que os primeiros raios de sol vão despertá-lo e ele vai sair caminhando. Mas isso é só impressão. Não arreda pé do seu destino, obediente até à morte, se é que há morte para ele. Por isso vai se perpetuando. Na minha memória, é eterno.

Alguém quis que fosse leme para a cidade. Por décadas – dir-se-á séculos – isso até pegou, mas não subsistirá nem mesmo como metáfora. Como já disse, não quer saber dele, antipoética, a cidade, nos braços do pequeno vale, perdida em descaminhos e delírios de grandeza e pequenez.

(Crônica publicada na Revestrés#29 – Fevereiro/Março 2017)